O Estado delinquente
POR IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, NA FOLHA
O Estado deve indenizar por danos morais todo criminoso que não tiver
direito a cumprir sua pena nos estritos limites da condenação
Todo criminoso deve ser punido. Cabe ao Poder Judiciário condená-lo,
após o devido processo legal e respeitada a ampla defesa. É o que
determina a lei suprema (artigo 5º, incisos LIV e LV).
Nas democracias, o processo penal objetiva defender o acusado, e não a
sociedade, que, do contrário, faria a justiça com as próprias mãos.
O condenado deve cumprir a sua pena nos estabelecimentos penais
instituídos pelo Estado, em que o respeito à dignidade humana necessita
ser assegurado.
Quando isso não ocorre, o Estado nivela-se ao criminoso. Age como tal,
equiparando-se ao delinquente, da mesma forma que este agiu contra sua
vítima.
A função dos estabelecimentos penais é a reeducação do condenado, para
que, tendo pago sua pena perante a comunidade, retorne à sociedade
preparado para ser-lhe útil.
Os cárceres privados constituem crime. Quem encarcera pessoas,
tirando-lhes a liberdade, deve ser punido e sofrer pena que o levará a
experimentar o mesmo mal que impôs a outrem.
E o cárcere público? Quando um criminoso já cumpriu o prazo de sua pena e
tem direito à liberdade, mas o Estado o mantém encarcerado, torna-se o
ente estatal um delinquente como qualquer facínora.
Todo condenado deve cumprir sua pena, mas nunca além daquela para a qual
foi condenado. Se o Estado o mantém no cárcere além do prazo, torna-se
responsável e deve ser punido por seu ato. Como não se pode encarcerar o
Estado, deve-se pelo menos pagar indenizações à vítima pelos danos
morais causados.
A tese vale também para aqueles que forem condenados a regimes abertos
ou semiabertos e acabarem por cumprir a pena em regimes fechados, por
falta de estrutura estatal, pois estarão pagando à sociedade algo que
lhes não foi exigido, com violência a seu direito de não permanecerem
atrás das grades. Nesses casos, devem também receber indenização por
danos morais.
A tese de que todos são iguais e não deve haver privilégio seria correta
se o Estado mantivesse estabelecimentos que permitissem um tratamento
pelo menos com um mínimo de respeito à dignidade humana. Como isso não
ocorre, a tese de que todos devem ser iguais e, portanto, devem “gozar”
das péssimas condições que o Estado oferece é simplesmente aética, para
não dizer algo pior. Em vez de o Estado dar exemplo de reeducação dos
detentos, a tese da igualdade passa a ser garantir a todos tratamento
com “igual indignidade”.
Enquanto a Anistia Internacional esteve no Brasil, pertenci à entidade.
Lutávamos, então, não só contra a tortura, mas contra todo o tratamento
indigno aos encarcerados, pois não cabe à sociedade nivelar-se a eles,
mas dar-lhes o exemplo e tentar recuperá-los.
Por isso, ocorreu-me uma ideia que sugiro aos advogados penalistas e
civilistas –não atuo em nenhuma das duas áreas–, qual seja, a criação de
uma associação, semelhante àquela que Marilena Lazzarini criou em
defesa dos consumidores, para apresentar ações de indenização por danos
morais em nome das pessoas que: a) cumpram penas superiores àquelas para
as quais foram condenadas; b) cumpram penas em regimes fechados, quando
deveriam cumpri-las em regime aberto ou semiaberto; c) cumpram penas em
condições inadequadas.
Talvez assim o Estado aprendesse a não nivelar-se aos delinquentes.
Sofrendo o impacto de tais ações, quem sabe poderia esforçar-se por
melhorar as condições dos estabelecimentos penais, respeitar prazos e
ofertar dignidade no cumprimento das penas.
Todo criminoso deve cumprir sua pena, mas nos estritos limites da
condenação e em condições que não se assemelhem às dos campos de
concentração do nacional-socialismo.
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, 78, advogado, é professor emérito da
Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e
da Escola Superior de Guerra
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