50 anos do Golpe Militar. “Muito Além do Cidadão Kane”: a incrível atualidade do único documentário sobre Roberto Marinho.
"Meio
século após o golpe, “Muito Além do Cidadão Kane” reforça esse ponto:
um relato honesto e abrangente sobre a ditadura tem, obrigatoriamente,
de levar em conta o protagonismo da TV Globo e de Roberto Marinho. Sem o
doutor Roberto, provavelmente nada teria sido possível."
“Muito Além do Cidadão Kane”: a incrível atualidade do único documentário sobre Roberto Marinho
O documentário “Muito Além do Cidadão Kane”, de 1993, é uma daquelas
obras com a rara capacidade de ficar mais atuais à medida que o tempo
passa — um, por sua qualidade, dois, pela falta completa de algo
parecido.
Conta a história de Roberto Marinho e da Globo. Nos 50 anos do golpe,
ajuda a compreender uma relação umbilical e uma, digamos,
retroalimentação em que uma das partes teve fim — a ditadura — e a outra
seguiu firme e forte.
“Beyond Citizen Kane” foi produzido pelo Canal 4 britânico e dirigido
por Simon Hartog, cineasta independente que começou a carreira nos anos
60. Hartog morreu quando o filme estava sendo editado. Não pôde ver seu
impacto.
Foi exibido na Inglaterra. A Globo tentou comprar os direitos para se
livrar dele, mas Hartog já havia se precavido contra isso numa cláusula.
Em seguida, entrou na Justiça para proibir sua exibição no MAM do Rio
em março de 1994 — e ganhou, naturalmente. Os pôsteres foram recolhidos
pela polícia.
A cópia que passaria no MIS, em São Paulo, foi confiscada a mando do
governador Luiz Antonio Fleury. Outras puderam circular legalmente em
universidades só nos anos 2000. Hoje, graças à internet, “Muito Além do
Cidadão Kane” está no YouTube na íntegra.
O tom não é de libelo, não é histérico, não é conspiratório. Ao
contrário, é uma longa reportagem, extremamente sóbria, contando uma
história que não tinha sido contada sobre a maior rede de televisão do
Brasil e seu dono. Isso é notícia.
Hartog e equipe falaram com mais de 40 pessoas — de Chico Buarque a
Armando Falcão, de ACM ao ex-diretor de jornalismo da Globo Armando
Nogueira. Acompanham, também, a “família Silva”, moradora da periferia
de Salvador. Pai, mãe e filhos num barraco escuro, cujo maior foco de
luz vem de uma telinha de tevê na mesa da sala/cozinha, ligada no
Fantástico.
Há vozes críticas, evidentemente: Brizola (que compara RM a Stalin, já
que ambos mandavam seus desafetos para a Sibéria ou para o
“esquecimento”); Chico Buarque, lembrando do poder “assustador” da
emissora e dos jabás; Lula, pré-Lulinha Paz e Amor, reclamando do
“senhor” que manda em tudo e da cobertura das greves do ABC.
Mas ali estão também empresários, publicitários (como Washington
Olivetto), políticos, funcionários e ex-funcionários. Armando Falcão,
ministro da Justiça durante a ditadura, lembra com carinho do amigo e
diz, candidamente, que ele já era “revolucionário antes da Revolução de
64”. “Doutor Roberto nunca me criou nenhum tipo de dificuldade”, diz
ele. Roberto Civita, dono da Abril, explica como sua empresa não
conseguiu as concessões que queria em 1980 após a falência da Tupi.
Hartog mostra, com imagens e depoimentos da época, como a Globo se
esforçou para sedimentar a boa reputação do regime militar. Lembra que a
fatia do bolo publicitário da propaganda governamental já era grande na
época e que, em 1990, a Globo detinha 75% da verba total no país.
Walter Clark, chefe da emissora antes de Boni, conta que Roberto Marinho
o demitiu porque Clark “já tinha montado o trem elétrico e agora ele
podia brincar à vontade. É uma pessoa bem parecida com o Cidadão Kane,
mas acho que ele não tem o Rosebud”.
Marinho, obviamente, não deu entrevistas. Surge ao lado de todos os
generais e, em seguida, com Tancredo, Sarney e Collor. “Doutor Roberto é
meu amigo há mais de 30 anos. O pessoal tem muita inveja”, afirma
Antônio Carlos Magalhães, feito ministro das comunicações por Roberto
Marinho no governo Sarney.
A certa altura, menciona-se a minissérie “Anos Rebeldes”, que tratou da
inquietação da juventude brasileira no fim dos anos 60. Ficou manca:
faltou um papel para a Globo, que não é coadjuvante.
Meio século após o golpe, “Muito Além do Cidadão Kane” reforça esse
ponto: um relato honesto e abrangente sobre a ditadura tem,
obrigatoriamente, de levar em conta o protagonismo da TV Globo e de
Roberto Marinho. Sem o doutor Roberto, provavelmente nada teria sido
possível.
“Muito Além do Cidadão Kane”: a incrível atualidade do único documentário sobre Roberto Marinho
Conta a história de Roberto Marinho e da Globo. Nos 50 anos do golpe, ajuda a compreender uma relação umbilical e uma, digamos, retroalimentação em que uma das partes teve fim — a ditadura — e a outra seguiu firme e forte.
“Beyond Citizen Kane” foi produzido pelo Canal 4 britânico e dirigido por Simon Hartog, cineasta independente que começou a carreira nos anos 60. Hartog morreu quando o filme estava sendo editado. Não pôde ver seu impacto.
Foi exibido na Inglaterra. A Globo tentou comprar os direitos para se livrar dele, mas Hartog já havia se precavido contra isso numa cláusula. Em seguida, entrou na Justiça para proibir sua exibição no MAM do Rio em março de 1994 — e ganhou, naturalmente. Os pôsteres foram recolhidos pela polícia.
A cópia que passaria no MIS, em São Paulo, foi confiscada a mando do governador Luiz Antonio Fleury. Outras puderam circular legalmente em universidades só nos anos 2000. Hoje, graças à internet, “Muito Além do Cidadão Kane” está no YouTube na íntegra.
O tom não é de libelo, não é histérico, não é conspiratório. Ao contrário, é uma longa reportagem, extremamente sóbria, contando uma história que não tinha sido contada sobre a maior rede de televisão do Brasil e seu dono. Isso é notícia.
Hartog e equipe falaram com mais de 40 pessoas — de Chico Buarque a Armando Falcão, de ACM ao ex-diretor de jornalismo da Globo Armando Nogueira. Acompanham, também, a “família Silva”, moradora da periferia de Salvador. Pai, mãe e filhos num barraco escuro, cujo maior foco de luz vem de uma telinha de tevê na mesa da sala/cozinha, ligada no Fantástico.
Há vozes críticas, evidentemente: Brizola (que compara RM a Stalin, já que ambos mandavam seus desafetos para a Sibéria ou para o “esquecimento”); Chico Buarque, lembrando do poder “assustador” da emissora e dos jabás; Lula, pré-Lulinha Paz e Amor, reclamando do “senhor” que manda em tudo e da cobertura das greves do ABC.
Mas ali estão também empresários, publicitários (como Washington Olivetto), políticos, funcionários e ex-funcionários. Armando Falcão, ministro da Justiça durante a ditadura, lembra com carinho do amigo e diz, candidamente, que ele já era “revolucionário antes da Revolução de 64”. “Doutor Roberto nunca me criou nenhum tipo de dificuldade”, diz ele. Roberto Civita, dono da Abril, explica como sua empresa não conseguiu as concessões que queria em 1980 após a falência da Tupi.
Hartog mostra, com imagens e depoimentos da época, como a Globo se esforçou para sedimentar a boa reputação do regime militar. Lembra que a fatia do bolo publicitário da propaganda governamental já era grande na época e que, em 1990, a Globo detinha 75% da verba total no país.
Walter Clark, chefe da emissora antes de Boni, conta que Roberto Marinho o demitiu porque Clark “já tinha montado o trem elétrico e agora ele podia brincar à vontade. É uma pessoa bem parecida com o Cidadão Kane, mas acho que ele não tem o Rosebud”.
Marinho, obviamente, não deu entrevistas. Surge ao lado de todos os generais e, em seguida, com Tancredo, Sarney e Collor. “Doutor Roberto é meu amigo há mais de 30 anos. O pessoal tem muita inveja”, afirma Antônio Carlos Magalhães, feito ministro das comunicações por Roberto Marinho no governo Sarney.
A certa altura, menciona-se a minissérie “Anos Rebeldes”, que tratou da inquietação da juventude brasileira no fim dos anos 60. Ficou manca: faltou um papel para a Globo, que não é coadjuvante.
Meio século após o golpe, “Muito Além do Cidadão Kane” reforça esse ponto: um relato honesto e abrangente sobre a ditadura tem, obrigatoriamente, de levar em conta o protagonismo da TV Globo e de Roberto Marinho. Sem o doutor Roberto, provavelmente nada teria sido possível.
Do Blog Causa-me Espécie!