Após o período atípico, sem manchetes denunciativas nas capas, que se
seguiu à instalação da CPI do Cachoeira, a revista Veja tenta sair das
cordas publicando, na edição desta semana, uma denúncia em que um seu
velho conhecido – o ministro Gilmar Mendes, do STF – afirma que o
ex-presidente Lula o teria pressionado para que tentasse adiar a data do
“julgamento do Mensalão” para depois das eleições municipais deste ano.
Em troca, segundo a revista, o ex-presidente ofereceria ao magistrado
“blindagem” contra eventuais acusações na CPI do Cachoeira.
Logo após a revista chegar às bancas, jornalistas e blogueiros passaram a
apontar as múltiplas inconsistências da matéria - trabalho facilitado,
inicialmente, pela negação peremptória da veracidade da denúncia feita
pela única testemunha presencial do encontro entre Mendes e Lula (o
ex-ministro da Defesa Nelson Jobim) e complementado, na noite de ontem,
pelo depoimento do próprio Gilmar Mendes ao Jornal Nacional, em que
afirma que “ele [Lula] não pediu nada diretamente a mim”.
Factoide de curta duração
Não é meu interesse, aqui, repisar os múltiplos fatos e constatações que
desmontaram o factoide de Veja em questão de horas, nem especular o que
teria levado Mendes a desmentir a revista já na segunda-feira. As
explicações estão aí, aos borbotões, na internet e no pouco que resta de
imprensa séria no Brasil.
Tampouco me interessa, no curto espaço deste artigo, analisar a
incompatibilidade da conduta de Gilmar Mendes com a posição que ocupa:
como reconheceria qualquer pessoa ciente das leis, ainda que a acusação
fosse verdadeira, seria obrigação de um ministro do STF levá-la à
Justiça, e não, após mais de um mês de silêncio, fazer futricas na menos
confiável das publicações brasileiras.
Lúdica imprensa
O que gostaria de propor aos leitores e leitoras neste texto é um
exercício mental, um jogo, que pede uma certa dose de abstração, tendo
como meta produzir uma reflexão sobre o jornalismo brasileiro hoje:
façamos como Carlinhos Cachoeira e brinquemos de editor.
A proposta do jogo é que nos coloquemos no lugar do editor de uma
hipotética revista jornalística séria. Tentemos evitar, portanto,
assumir uma posição ideológica pré-determinada e tenhamos como meta
principal simular adotar os mesmos critérios práticos que o jornalismo
historicamente chama para si – checagem de informações, ouvir os dois
lados, equilíbrio, responsabilidade social, defesa do interesse público.
Comecemos fazendo um esforço para esquecer, por um momento, a biografia e
as peculiaridades dos personagens envolvidos na última “denúncia” da
Veja, publicação que – com o perdão pelo duplo sentido - também deve ser
abstraída de nosso pensamento. Conservemos a mesma denúncia, feita
porém a uma revista jornalística séria de um país democrático: um
ministro da Suprema Corte acusa um ex-presidente (por duas vezes eleito)
de tê-lo pressionado para que convencesse colegas de toga a optarem
pelo adiamento de determinado julgamento, envolvendo acusação de
corrupção contra o partido político do ex-mandatário (mas não
diretamente contra este). Em troca, ele teria prometido “aliviar a
barra” do denunciante se e quando pipocassem acusações contra este numa
CPI em andamento.
Jornalismo dentro da lei
Antes de examinarmos o caso é forçoso constatar que tudo o que se refere
à denúncia teria de ser checado e rechecado pelos editores, antes da
eventual publicação da matéria, posto que, além de serem estes os
procedimentos recomendados pelo bom jornalismo, o que está em jogo
envolve altas personalidades da República e poderia provocar sérias
consequências tanto no campo jurídico quanto político-eleitoral.
Desnecessário observar que a constatação de eventual leviandade por
parte da publicação fatalmente acarretaria danos, não só à sua imagem
pública, mas no âmbito judicial, já que a existência e o cumprimento de
leis que regulamentam o exercício do jornalismo são característica comum
aos países de democracia consolidada.
Um primeiro fator a se considerar pelo editor da revista seria o da
credibilidade da testemunha. Ser ministro do Supremo ajuda, mas, como se
sabe, quanto mais avançada a democracia, menos vale o “critério” da
carteirada, do “você sabe com quem está falando?”. Uma publicação
jornalística séria levaria em conta se o denunciante tem uma história
moral condizente com a que se espera de alguém que tem assento na mais
alta corte do país ou seu passado é entremeado de episódios obscuros,
suspeitas, ligações com personalidades políticas controversas, perda da
compostura em púbico, grampos sem áudio. A opinião pública e seus pares
de toga o respeitam, ou ele já chegou a ser publicamente acusado, por um
deles, de estar “na mídia, destruindo a credibilidade do Judiciário
brasileiro”?
Testemunha-chave
Uma segunda medida, porém elementar, seria se inteirar se haveria
testemunhas que pudessem corroborar ou desmentir a acusação feita pelo
ministro e, em havendo, entrevistá-la(s). Afinal, uma terceira pessoa
que reafirmasse o ocorrido, a depender de sua credibilidade e do grau de
coincidência com a denúncia originalmente formulada, forneceria uma
evidência mais consistente para a publicação da denúncia, reduzindo o
ônus da revista – ao passo que, se esse terceiro elemento fosse
reticente ou desmentisse a acusação, acenderia um alerta e faria
aumentar a desconfiança na redação quanto à veracidade do relato do
magistrado.
Ora, nenhuma publicação séria do mundo publicaria uma denúncia contra um
ex-presidente ciente de que esta seria desmentida pela única testemunha
presencial capaz de corroborá-la, como Jobim o fizera em relação à
denúncia de Veja/Mendes. Nosso jogo deveria, portanto, terminar aqui, já
que um editor responsável e jornalistas honrados jamais concordariam em
assinar uma matéria tão leviana, alicerçada em bases tão frágeis. Mas,
entre nós, brasileiros, o jornalismo responsável anda tão escasso que
proponho brincarmos de imprensa séria um pouquinho mais.
Coerência lógica
Consideremos então que, para nosso valoroso redator, tão essencial
quanto as medidas acima elencadas seria um exame da plausibilidade da
denúncia. Várias questões então se colocariam para ele. A primeira delas
diz respeito à probabilidade lógica: o STF tem 11 membros. Do time
atual, o ex-presidente indicou seis nomes, e sua sucessora, do mesmo
partido, dois. Já o ministro acusador foi indicado por um ex-presidente
que antecedeu a ambos mandatários e lhes faz oposição, indicação que,
segundo alguns, se deu como forma de recompensar a extrema leniência com
que o nomeado desempenhou o papel de Procurador-geral da República em
seu governo.
Ora, por que o ex-presidente agora acusado, ao invés de pressionar os
oito ministros nomeados por ele e sua sucessora, preferiria ir ter com
um magistrado nomeado pelo seu principal opositor? Mais: por que o
faria, se fora anteriormente publicamente agredido pelo mesmo ministro,
que declarou que iria “chamá-lo às falas” por conta de uma denúncia de
grampo no STF - publicada, aliás, na mesma revista ora sob suspeita, e
jamais comprovada?
Fora de timing
Certamente nosso brioso editor, já picado pela vespa da perplexidade
(ele é um editor imaginário, mas é humano), quedaria a pensar por que
cargas d'água um ex-presidente desejoso de manipular a data do tal
julgamento iria pressionar um ministro sem posição de comando no
tribunal ou função especial alguma no “julgamento do Mensalão”, ao invés
de acossar os presidentes do STF e do TSE ou o relator do caso? “Isso
não faz sentido algum”, refletiria o nobre homem.
Por fim, pensaria nosso já estupefato editor, por que o ex-presidente,
que poderia ter feito como seu antecessor e mandado engavetar a granel
denúncias que o desagradassem, se tinha interesse em manipular o
“julgamento do Mensalão”, não o fez antes, no poder?
Essa questão certamente estaria na pauta da entrevista com o
ex-presidente, a qual, obedecendo parâmetros éticos mínimos, deveria não
apenas dar a voz ao outro lado para que se posicionasse ante as
acusações que lhe são feitas, mas publicá-las com destaque textual e
fotográfico proporcional ao dado às acusações e ao acusador. Isso,
conclui o editor, se não existissem tantos furos a impedir a realização
de uma matéria minimamente séria, que pode destruir nossa reputação.
Uma questão de ética
Xingando mentalmente o pauteiro que propôs uma matéria tão sem
sustentação, nosso valoroso editor desiste de publicar a matéria e
comunica a decisão aos demais profissionais envolvidos – não sem uma
sutil reprimenda entrelinhas.
Desliga o computador, fechas as gavetas e, com a consciência leve
assegurando a dignidade com que os jornalistas de Veja não podem nem
sonhar, sai assobiando pelas ruas com as mãos nos bolsos, vendo a tarde
cair.
Maurício Caleiro
No Cinema & Outras Artes
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