Genoíno foi torturado na ditadura e
seus torturadores seguem impunes, abrigados por decisões deste mesmo
tribunal que condena sem provas militantes do PT.
Ernst Bloch, na sua crítica aos princípios do Direito Natural sem
fundamentação histórica, defendeu que não é sustentável que o homem seja
considerado, por nascimento, "livre e igual", pois não há "direitos
inatos, e sim que todos são adquiridos em luta". Esta categorização,
"direitos adquiridos em luta", é fundamental para compreender as
ordens políticas vigentes como Estado de Direito, que proclamam um
elenco de princípios contraditórios, que ora expressam com maior vigor
as conquistas dos que se consideram oprimidos e explorados no sistema de
poder que está sendo impugnado, ora expressam resistências dos
privilegiados, que fruem o poder real: os donos do dinheiro e do poder.
Esta dupla possibilidade de uma ordem política, inscrita em todas as
constituições, mais ou menos democráticas, às vezes revela-se mais
intensamente no contencioso político, às vezes ela bate à porta dos
Tribunais. A disputa sobre o modelo de desenvolvimento do país, por
exemplo, embora em alguns momentos tenha sido judicializada, deu-se até
agora, predominantemente, pela via política, na qual o PT e seus
aliados de esquerda e do centro político foram vitoriosos, embora com
alianças pragmáticas e por vezes tortuosas para ter governabilidade.
Já a disputa sobre a interpretação das normas jurídicas que regem a
anistia em nosso país e a disputa sobre as heranças dos dois governos
do presidente Lula tem sido, predominantemente, judicializadas. São
levadas, portanto, para uma instância na qual a direita política, os
privilegiados, os conservadores em geral (que tentaram sempre fulminar o
Prouni, o Bolsa Família, as políticas de valorização do salário
mínimo, as políticas de discriminação positiva, e outras políticas
progressistas), tem maior possibilidade de influenciar.
Quando falo aqui em "influência" não estou me referindo a incidência
que as forças conservadoras ou reacionárias podem ter sobre a
integridade moral do Poder Judiciário ou mesmo sobre a sua honestidade
intelectual. Refiro-me ao flanco em que aquelas forças - em
determinados assuntos ou em determinadas circunstâncias - podem exercer
com maior sucesso a sua hegemonia, sem desconstituir a ordem jurídica
formal, mantendo mínimos padrões de legitimidade.
O chamado processo do "mensalão" obedeceu minimamente aos ritos formais
do Estado de Direito, com atropelos passíveis de serem cometido sem
maiores danos à defesa, para chegar a final previamente determinado,
exigido pela grande mídia, contingenciado por ela e expressando
plenamente o que as forças mais elitistas e conservadoras do país
pretendiam do processo: derrotados na política, hoje com três mandatos
progressistas nas costas, levaram a disputa ao Poder Judiciário para
uma gloriosa “revanche”: ali, a direita derrotada poderia fundir (e
fundiu) uma ilusória vitória através do Direito, para tentar
preparar-se para uma vitória no terreno da política. As prisões de
Genoíno e José Dirceu foram celebradas freneticamente pela grande
imprensa.
Sustento que os vícios formais do processo, que foram corretamente
apontados pelos advogados de defesa - falo dos réus José Genoíno e
José Dirceu - foram totalmente secundários para as suas condenações.
Estas, já estavam deliberadas antes de qualquer prova, pela grande
mídia e pelas forças conservadoras e reacionárias que lhe são
tributárias, cuja pressão sobre a Suprema Corte - com o acolhimento
ideológico de alguns dos Juízes- tornou-se insuportável para a ampla
maioria deles.
Lembro: antes que fossem produzidas quaisquer provas os réus já eram
tratados diuturnamente como “quadrilheiros”, “mensaleiros”,
“delinquentes”, não somente pela maioria da grande imprensa, mas
também por ilustres figuras originárias dos partidos derrotados nas
eleições presidenciais e pela banda de música do esquerdismo,
rapidamente aliada conjuntural da pior direita nos ataques aos Governos
Lula. Formou-se assim uma santa aliança, antes do processo, para
produzir a convicção pública que só as condenações resgatariam a
“dignidade da República”, tal qual ela é entendida pelos padrões
midiáticos dominantes.
Em casos como este, no qual a grande mídia tritura indivíduos, coopta
consciências e define comportamentos, mais além de meras convicções
jurídicas e morais, não está em jogo ser corajoso ou não, honesto ou
não, democrata ou não. Está em questão a própria funcionalidade do
Estado de Direito, que sem desestruturar a ordem jurídica formal pode
flexioná-la para dar guarida a interesses políticos estratégicos
opostos aos que “adquirem direitos em luta”. Embora estes direitos
sejam conquistas que não abalam os padrões de dominação do capital
financeiro, que tutela impiedosamente as ordens democráticas modernas,
sempre é bom avisar que tudo tem limites. O aviso está dado. Mas ele
surtirá efeitos terminativos?
Este realismo político do Supremo ao condenar sem provas, num processo
que foi legalmente instituído e acompanhado por todo o povo - cercado
por um poder midiático que tornou irrelevantes as fundamentações dos
Juízes - tem um preço: ao escolher que este seria o melhor desfecho não
encerrou o episódio. Ficam pairando, isto sim, sobre a República e
sobre o próprio prestígio da Suprema Corte, algumas comparações de
profundo significado histórico, que irão influir de maneira decisiva em
nosso futuro democrático.
José Genoíno foi brutalmente torturado na época da ditadura e seus
torturadores continuam aí, sorridentes, impunes e desafiantes, sem
qualquer ameaça real de responderem, na democracia, pelo que fizeram
nos porões do regime de arbítrio, abrigados até agora por decisões
deste mesmo Tribunal que condena sem provas militantes do PT. José
Dirceu coordenou a vitória legítima de Lula, para o seu primeiro
mandato e as suas “contrapartes”, que compraram votos para reeleger
Fernando Henrique (suponho que sem a ciência do Presidente de então),
estão também por aí, livres e gaudérios.
O desfecho atual, portanto, não encerra o processo do “mensalão”, mas
reabre-o em outro plano: o da questão democrática no país, na qual a
“flexão” do Poder Judiciário mostra-se unilateralmente politizada para
“revanchear” os derrotados na política. Acentua, também, o debate
sobre o poder das mídias sobre as instituições. Até onde pode ir, na
democracia, esta arrogância que parece infinita de julgar por
antecipação, exigir condenações sem provas e tutelar a instituições
através do controle e da manipulação da informação?.
Militei ao lado de José Genoíno por mais de vinte anos, depois nos
separamos por razões políticas e ideológicas, internamente ao Partido. É
um homem honesto, de vida modesta e honrada, que sempre lutou por seus
ideais com dignidade e ardor, arriscando a própria vida, em momentos
muito duros da nossa História. Só foi condenado porque era presidente
do PT, no momento do chamado “mensalão”.
Militei sempre em campos opostos a José Dirceu em nosso Partido e, em
termos pessoais, conheço-o muito pouco, mas não hesito em dizer que foi
condenado sem provas, por razões eminentemente políticas, como
reconhecem insuspeitos juristas, que sequer tem simpatias por ele ou
pelo PT.
Assim como temos que colocar na nossa bagagem de experiências os erros
cometidos que permitiram a criação de um processo judicial ordinário,
que se tornou rapidamente um processo político, devemos tratar, ora em
diante, este processo judicial de sentenças tipicamente políticas,
como uma experiência decisiva para requalificar, não somente as nossas
instituições democráticas duramente conquistadas na Carta de 88, mas
também para organizar uma sistema de alianças que dê um mínimo respaldo,
social e parlamentar, para fazermos o dever de casa da revolução
democrática: uma Constituinte, no mínimo para uma profunda reforma
política, num país em que a mídia de direita é mais forte do que os
partidos e as instituições republicanas.
Tarso Genro, Governador do Rio Grande do Sul
No Carta Maior
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