sábado, 20 de setembro de 2014

Mercadante disseca o programa de Marina

Ao 247, Mercadante disseca o programa de Marina

Por Paulo Moreira Leite

Aos 60 anos de idade, Aloizio Mercadante encontra-se no ponto mais alto de quatro décadas de uma atividade politica iniciada como liderança estudantil na luta contra regime militar, no início dos anos 1970. Como ministro-chefe da Casa Civil, ele representa os olhos e os ouvidos da presidente Dilma Rousseff, cuja confiança conquistou depois de um retorno tímido a Brasília, como ministro de Ciência e Tecnologia, quase um cargo de consolação após a derrota na disputa pelo governo de São Paulo, em 2010. Promovido a ministro da Educação em 2012, Mercadante assumiu a Casa Civil no início deste ano, quando Gleisi Hoffman se afastou para disputar o governo do Paraná. Escalado, inicialmente, para administrar o governo enquanto a própria Dilma enfrentava a dupla jornada de presidente e candidata, Mercadante tornou-se, nas últimas semanas, uma peça importante na campanha pela reeleição, também.

Com uma formação acadêmica que vem da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo, reforçada por cursos de pós-Graduação na Universidade de Campinas, Mercadante dedicou um de seus livros mais recentes, ("Brasil - A construção retomada") a Celso Furtado, o grande mestre do pensamento desenvolvimentista, autor de "Brasil- A construção interrompida", obra que foi uma das fontes de inspiração da vida acadêmica do ministro. Ninguém poderia imaginar que, em 2014, no calor da disputa presidencial, um assessor de Marina Silva colocaria em dúvida as ideias do mestre para dar combate a política econômica do governo Dilma. Foram críticas "preconceituosas e rebaixadas," rebate Mercadante, nesta entrevista exclusiva ao 247.

Conhecido, nas assembleias estudantis, como uma das oratórias mais calibradas de sua geração, Aloizio Mercadante abriu um espaço em sua agenda desumana, na semana passada, para dissecar, ponto a ponto, o programa de governo de Marina Silva. A entrevista:

247 – O senhor já definiu o programa de Marina como uma colcha retalhos, que tenta unir o Neo-Liberalismo de Collor – FHC com políticas sociais e ampliação do mercado interno do governo Lula. Como entender isso?

Aloizio Mercadante – Estamos discutindo o futuro do Brasil e, portanto, o debate democrático deve ser feito de forma rigorosa e profunda. Convivi com Marina Silva por décadas, no Partido dos Trabalhadores (PT) e como parlamentar da mesma bancada no Congresso Nacional. Minha análise, extremamente crítica à candidatura de Marina, leva em conta a composição de forças heterogêneas, predominantemente conservadoras, que estão reunidas em torno de sua candidatura e as inconsistências e contradições presentes em seu programa de governo no discurso de campanha, que merecem reflexão criteriosa. O programa de governo de Marina Silva é uma colcha de retalhos, mal costurada. Além do improviso e da precariedade de suas propostas, são gritantes a quantidade de plágios já comprovados e os sucessivos recuos diante de diversos temas.


247 - Por que isso acontece?

Mercadante – Isso reflete o caráter de sua candidatura, que não é resultado do acúmulo de debates que costumam ocorrer no interior dos partidos políticos estruturados. Nos últimos anos, a candidata passou por três partidos e tentou, sem sucesso, criar um novo partido, mas não conseguiu reunir em torno de si, de forma organizada, quadros técnicos e políticos que fossem capazes de formular coletivamente um programa de governo à altura dos desafios que o país tem pela frente. O que ela fez foi costurar uma aliança política que não passa de uma aglomeração de personalidades e de apoios difusos. Por isso, seu programa acaba reunindo, às pressas, um conjunto de propostas contraditórias que denunciam sua tentativa de acomodar demandas de diversos setores, sem compromisso com a coerência e a eficácia de suas promessas de campanha.

247 – Qual a grande contradição?

Mercadante – A maior contradição está na opção em radicalizar o projeto neoliberal e a política econômica ortodoxa, e, ao mesmo tempo, dizer que vai ampliar as políticas sociais postas em prática nos últimos doze anos. Ela ignora que não há diálogo possível entre suas propostas neoliberais para a área econômica, inspiradas nos governos Collor e FHC, e as políticas de inclusão social dos governos Lula e Dilma. Na verdade, nunca uma candidatura presidencial levou tão longe seu compromisso com o Estado mínimo e políticas neoliberais tardias. Isso não aconteceu nem mesmo nos momentos de profunda crise econômica, em que o país esteve sujeito aos pacotes do FMI.

247 – Por exemplo....

Mercadante – Na área econômica, ela se compromete com uma politica de choque nos preços de energia, “o tarifaço”, que teria forte impacto na inflação; com a independência jurídica do Banco Central, na contramão de toda a reflexão teórica e política pós-crise de 2008 sobre o papel do Estado na regulação do sistema financeiro; com a criação de um Conselho Nacional de Responsabilidade Fiscal, formado por tecnocratas “independentes e sem qualquer vínculo com o governo”; com a redução do papel dos bancos públicos e do crédito direcionado para a indústria, a agricultura, a construção civil e para os consumidores de baixa renda; e com a eliminação da política de conteúdo local, que poderá desarticular principalmente a industrial naval e a cadeia de petróleo e gás. Essas medidas implicam delegar aos credores da dívida pública e aos bancos privados o poder de arbitrar as taxas de juros e de câmbio e a regulação do sistema financeiro. Elas reduziriam drasticamente o poder de um governo democraticamente eleito para atuar no campo fiscal e da política orçamentária. Outro efeito é suprimir o papel do Estado na execução de políticas anticíclicas, como aconteceu a partir de 2008, que se mostraram cruciais para o enfrentamento da crise internacional e para fomentar os investimentos e aumentar o emprego.

247 – O que está errado no programa?

Mercadante – A conta não fecha. Na área social a candidata promete elevar gastos em cerca de R$ 260 bilhões, o que equivale a aproximadamente 5% do PIB. Quer antecipar a meta de 10% do PIB para a educação (R$ 170 bilhões/ano), prevista no PNE, elevar o gasto com saúde para 10% da receita corrente bruta (R$ 40 bilhões/ano), aumentar em dois pontos percentuais o Fundo de Participação dos Municípios (R$ 9 bilhões/ano), estender o Bolsa Família para mais 10 milhões de famílias (R$ 19 bilhões/ano), acabar com o Fator Previdenciário (R$12 bilhões/ano), criar o passe livre estudantil (R$ 12 bilhões/ano), e multiplicar por 10 orçamento do Fundo Nacional de Segurança Pública (R$ 3,7 bilhões). Marina sabe muito bem que na vida pública é preciso eleger prioridades. E o que ela faz é desenhar uma política ortodoxa e recessiva que conflita com suas promessas sociais. Como a conta não fecha, ela não tem como esconder a real prioridade, que será o ajuste fiscal ortodoxo. Ao mencionar as promessas para a área social, Eduardo Giannetti, seu principal assessor econômico, enfatizou que “os compromissos assumidos no programa serão cumpridos à medida que as condições viabilizarem, sem prejuízo do equilíbrio fiscal. ” Ao dizer isso, Giannetti está avisando: se a conta não fechar os pobres vão ter de esperar.

247 – Como seria isso?

Mercadante – No programa de Marina, o investimento social será subordinado à meta fiscal, estabelecida por um novo organismo chamado Conselho de Responsabilidade Fiscal. É este conselho, independente do governo, a quem competiria assegurar o superávit primário. Ou seja, se as contas apertarem -- e nós sabemos que isso acontece nos melhores governos -- os pobres, novamente, vão ser esquecidos na hora de definir sua parte no orçamento público. O programa de Marina traz de volta um neoliberalismo tardio e uma política econômica ortodoxa, que, na prática, representa a negação da estratégia adotada nos últimos 12 anos, baseada na decisão de fazer da inclusão social e da distribuição de renda os eixos estruturantes do desenvolvimento econômico. Os governos Lula e Dilma foram responsáveis pela maior distribuição de renda de nossa história e pela saída do Brasil do Mapa da Fome, segundo a ONU. Na politica econômica proposta por Marina, o social é apenas uma variável de ajuste da política fiscal, que foi terceirizada para o seu comitê de tecnocratas.

247 – No programa de governo, a candidata omite o papel do pré-sal e não ressalta os avanços recentes do país com energia eólica. Por que?

Mercadante – A Marina tem uma resistência antiga e anacrônica ao petróleo e ao pré-sal. Ela ignora a importância do petróleo na matriz energética mundial, não apenas como fonte de energia, mas também sob a forma de produtos e serviços. São milhares de empregos gerados na exploração e distribuição, na petroquímica e em tantos outros setores em que o petróleo e seus derivados são empregados. O setor também é responsável por estimular a pesquisa, o desenvolvimento e a inovação, com impacto direto na produtividade da indústria e da economia como um todo. Em 2009, ao ser entrevistada no programa Roda Viva, Marina defendeu que investir na exploração do pré-sal era uma “aposta errada”, um erro estratégico, pois os resultados relevantes só viriam em 20 anos. Nesse prazo, os combustíveis fósseis já teriam sido superados pelos biocombustíveis de segunda geração. Passados quatro anos, o pré-sal já é uma realidade, produzindo 540 mil barris/dia. Os governos Lula e Dilma implantaram o regime de partilha, que define a Petrobras como operadora única do pré-sal e estabelece uma política de compras públicas e de incentivo ao conteúdo local. Isso permitiu a construção de 15 novos estaleiros, que hoje empregam mais 80 mil trabalhadores. Nossa indústria naval estava destruída e hoje é a quarta do mundo.

247 – Assessores de Marina dizem d que o governo Dilma desenvolve essa política porque está preso a uma visão ideológica superada.

Mercadante – É inacreditável que uma candidatura presidencial defenda a compra de nossas plataformas e navios de países asiáticos e acredite que essa iniciativa possa ter algum efeito positivo sobre o investimento e o crescimento do Brasil. O único efeito é que os empregos daqui vão migrar para países do outro lado do mundo, que não abrem mão de suas políticas de promoção industrial e de comércio exterior. São essas políticas estratégicas que o coordenador de campanha, Walter Feldman, considera “doutrinárias” e que, na sua opinião, devem ser totalmente revistas. Essa revisão fará com que o pré-sal deixe de ser explorado pela Petrobras como única operadora, sob o regime de partilha. A eliminação do regime de partilha implicariam entregar às grandes empresas privadas internacionais nossa reservas estratégicas, e também reduziria significativamente a participação do povo brasileiro na distribuição dessa importante riqueza. A vinculação dos royalties do pré-sal e de metade do Fundo Social para as áreas de educação e saúde é o melhor exemplo de como transformar uma riqueza não-renovável em riqueza permanente e essencial para toda sociedade.

247 – Qual seria o impacto de medidas como redução do uso de combustíveis fósseis, criar uma tarifa sobre emissão de CO2, reestabelecer a CIDE?

Mercadante – Essas medidas não apenas trariam um imediato aumento dos preços dos combustíveis, mas também da energia elétrica gerada por termelétricas e de todos os produtos e serviços que utilizam, direta ou indiretamente, derivados de petróleo. É espantoso que o programa de governo de Marina nem sequer cite as termoelétricas movidas a combustíveis fósseis, que têm se mostrado essenciais para a segurança e economicidade do sistema elétrico, especialmente no último período.

247 – Por que Marina fala em rever o plano de instalação de novas usinas hidrelétricas?

Mercadante – A energia hidrelétrica é outro alvo da candidata. Hoje, as usinas hidrelétricas são a principal fonte de energia elétrica do país e os reservatórios são uma forma estratégica de estocar energia. O Brasil possui algo em torno de 160 GW de potencial hidrelétrico não aproveitado, metade dele concentrado na região Norte. Recentemente, Marina declarou que será necessário rever o plano de instalação de novas Usinas Hidrelétricas na região Norte, subestimando o imenso potencial disponível e o papel estratégico dessas usinas, de eclusas e de hidrovias para a nossa logística. No caso das hidrovias, elas são fundamentais para reduzir os custos logísticos da produção agrícola da região Centro-Oeste, permitindo também desafogar os portos das regiões Sul e Sudeste.

247 – Sem pré-sal, sem hidrelétricas, como o país poderia obter a energia de que precisa e vai precisar nos próximos anos?

Mercadante – Além de subestimar o papel estratégico da energia hidrelétrica para o desenvolvimento sustentável da economia brasileira, o programa de governo propõe justamente o oposto. Diz que é preciso reorientar a matriz energética em direção às “fontes renováveis modernas (solar, eólica, de biomassa, geotermal, das marés, dos biocombustíveis de segunda geração)”. Não vamos ignorar que nos governos Lula e Dilma o país já avançou bastante na geração de energia limpa, como eólica, a solar e a biomassa. A oferta dessas fontes passou de 240MW para 3.101MW. A oferta de energia eólica vem crescendo entre 30% e 40% ao ano, o que nos coloca como segundo país que mais investe em geração eólica no mundo. Essa expansão tem ocorrido em paralelo ao desenvolvimento da produção doméstica de equipamentos para o setor, fruto das políticas industriais e de conteúdo local, que são tão duramente criticadas pela candidata. O problema é que, como ela mesma admite, essas opções devem trazer maior custo para o consumidor, sem, no entanto, garantir a segurança energética do país.

247 – Qual a importância desses fatores – custo e segurança – para a economia de um país?

Mercadante – A produção regular de energia a baixo custo é estratégica para a competividade da economia de qualquer país. Os Estados Unidos não permitem a exportação do gás de xisto extraído de suas imensas reservas, recém-descobertas. Eles estão mantendo os preços extremamente baixos para dar competitividade à sua indústria, mesmo com o país ocupando a vanguarda tecnológica nas áreas de produção de energias limpas.

247 – E a energia nuclear?

Mercadante – Os preconceitos de Marina se estendem à energia nuclear, que simplesmente é ignorada em seu programa de governo. Com Angra I e II e a construção de Angra III, o país continuará a gerar energia elétrica de baixo custo e fornecimento constante, ao contrário da energia gerada por usinas eólicas, solares e de marés, que dependem fortemente dos ciclos da natureza. O desenvolvimento da indústria nuclear também é essencial para a área da saúde.

247 – Marina mostrou-se capaz de recusar pesquisas nucleares para fins medicinais.

Mercadante – Em junho de 2010, a então senadora Marina Silva foi a única a votar contra a PEC 100/2007 que autorizava a produção, comercialização e utilização de produtos de radioisótopos para fins medicinais, sob supervisão da Comissão Nacional de Energia Nuclear. Na segunda votação dessa mesma PEC , quando se viu totalmente isolada no plenário, ela mudou o voto.

247 – É razoável criticar o desempenho do Brasil na proteção do meio ambiente?

Mercadante – A ONU reconhece que o Brasil é o país que mais contribuiu para a redução de emissões de gases de efeito estufa de todo planeta. Já atingimos 80% da meta voluntária que assumimos para 2020, de reduzir de 39% a 32% as emissões. O que o Brasil já reduziu em um ano equivale a todas as emissões do Reino Unido por igual período. Outra dimensão relevante é a redução do desmatamento da Amazônia.

247 – Qual o desempenho nessa questão?

Mercadante – Quando o presidente Lula assumiu o governo, tínhamos 21 mil km2 de desmatamento/ano. Durante a gestão de Marina no Ministério do Meio Ambiente, o desmatamento bateu recorde e chegou a 24 mil km2, e em 2007 reduzimos para cerca de 11 mil km2. Na gestão da presidente Dilma, tivemos as menores taxas de desmatamento da história da Amazônia, em torno de 5 mil km2 ano. O Brasil está construindo uma estratégia de desenvolvimento que combina crescimento econômico, inclusão social e sustentabilidade ambiental.

247 – Ao falar que pretende governar com os melhores -- sem explicar melhores para que -- Marina recupera o mito da eficiência técnica, que era o discurso favorito do regime militar e de todos governantes que não prestam contas de seus atos.

Mercadante – O programa de governo de Marina Silva traz duas propostas para a área econômica que transferem decisões políticas estratégicas para as mãos de tecnocratas. A proposta de independência legal do Banco Central, retira da população o direito de influir, ainda que indiretamente, em decisões que afetam o seu dia a dia, como, por exemplo, se o Banco Central deve considerar os impactos de suas decisões sobre o emprego e a renda. A constituição brasileira apenas prevê a independência dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. O que ela está propondo é praticamente um quarto poder: o poder dos bancos, traduzido em um Banco Central com uma diretoria blindada diante de qualquer governo democraticamente eleito pelo povo. A autonomia operacional do BC vem sendo praticada há décadas no Brasil, mas a independência completa representa um retrocesso na relação entre o governo democraticamente eleito e o capital financeiro. É inacreditável que essa proposta ganhe força depois da crise financeira internacional de 2008. Recentemente, o presidente do Banco da Inglaterra, Mark Carney, admitiu que a busca exclusiva do combate à inflação por um Banco central independente “tornou-se uma distração perigosa para a economia”. Economistas laureados com o Nobel e ex-economistas chefe do FMI e do Banco Mundial, como Joseph Stiglitz, Paul Krugman e Simon Johnson, destacam que os excessos dos bancos centrais independentes, sempre dispostos a atender os pleitos dos mercados financeiros em matéria de regulação bancária e política monetária, estão na raiz da crise de 2008.Também ressaltam que os países com bancos centrais menos independentes, como o Brasil, a Índia e a China, foram aqueles que melhor enfrentaram a recente crise internacional. O debate mundial, após 2008, caminhou no sentido contrário ao da proposta de Marina, pois o que está em pauta é como aprofundar a regulação e o controle sobre o sistema financeiro, estabelecer regras prudenciais e coibir os riscos e as consequências econômicas e sociais de novas crises financeiras.

247 – O programa também fala na ampliação do espaço para os bancos privados.

Mercadante – A proposta de independência legal do Banco Central é agravada quando associada à retração dos bancos públicos na oferta de crédito. Hoje, os bancos públicos respondem por aproximadamente 50% da oferta de crédito. Como diz seu principal assessor econômico, Eduardo Giannetti, a indústria deve se preparar para ser “desmamada”. Outro economista ligado à campanha, Alexandre Rands, qualifica os empresários como “prostitutas” na sua relação com os bancos públicos. São visões preconceituosas e rebaixadas da relação entre o Estado e setor privado, que, se levadas adiante, terão graves consequências para a indústria e todo o setor produtivo. Por sinal, também foram preconceituosas e rebaixadas as críticas ao ilustre brasileiro Celso Furtado e aos economistas da Unicamp. Não satisfeita em delegar exclusivamente a técnicos as decisões de política monetária e a regulação do sistema financeiro, a candidata também propõe delegar a condução da política fiscal a outro grupo de tecnocratas não eleitos pelo povo, “sem vinculação a nenhuma instância de governo”: o Conselho Nacional de Responsabilidade Fiscal. Dessa forma, ela propõe terceirizar instrumentos fundamentais que os governos democráticos dispõem para a implementação da política fiscal e orçamentária e o enfrentamento de crises.

247 – Quais as consequências práticas dessas propostas?

Mercadante – Concebidas sob o pretexto da racionalidade técnica, elas levam para o caminho da recessão, com o choque de preços de energia, o encarecimento do crédito, o aperto monetário e fiscal, a terceirização da politica fiscal e, consequentemente, o rompimento completo com os compromissos sociais e com a própria estrutura produtiva do país.

247 – Por que os ataques aos bancos públicos?

Mercadante – O programa de Marina Silva critica duramente os bancos públicos – que supostamente impediriam o desenvolvimento do crédito privado e do mercado de capitais – e condena os aportes do Tesouro nacional ao BNDES, bem como seus critérios na concessão de financiamentos. Entretanto, a presença e atuação dos bancos públicos têm sido fundamentais no financiamento de projetos estratégicos para o nosso desenvolvimento econômico, como grandes obras de infraestrutura e de modernização da indústria. É evidente que é importante desenvolver o crédito privado e novos instrumentos de crédito de longo prazo, mas é um equívoco privatizar o mercado de crédito e abrir mão de instrumentos públicos, para o investimento de longo prazo A atuação dos bancos públicos foi muito importante não apenas para a reação à crise de 2008, mas também para a manutenção de boa parte do dinamismo do mercado doméstico e para a recuperação do investimento, que permitiram combinar crescimento econômico com inclusão social. Diante da crise internacional, a política industrial e os bancos públicos (BB, BNDES, CEF, BASA, FINEP e BNE) têm sido utilizados pelos governos como instrumentos de política anticíclica e de renovação da estrutura produtiva. Nos últimos anos, houve um aumento do ativismo do Estado em vários países, como os Estados Unidos, o Japão e a Coreia do Sul, para não mencionar a China, que é o principal exemplo de dinamismo e utilização de bancos públicos. No fundo, a candidata retoma uma velha proposta do sistema financeiro, que deseja acabar com o crédito direcionado e barato para atividades estratégicas em áreas como agricultura, habitação e investimento de longo prazo. Ou seja, estariam comprometidos os R$ 180 bilhões de reais/safra para a agricultura comercial e familiar, previstos no plano Safra 2014-2015, os R$ 190 bilhões de reais/ano destinados pelo BNDES principalmente à indústria e infraestrutura, e os recursos destinados aos programas de financiamento à habitação popular, como o programa Minha Casa Minha Vida. Com isso, o crédito ficaria mais caro, tanto para quem produz, quanto para quem quer comprar sua casa própria, derrubando assim os Investimentos e empurrando nossa economia para um ajuste ortodoxo e recessivo. Marina propõe eliminar a política de compras governamentais e conteúdo local. Os principais alvos de suas medidas são a cadeia de petróleo e gás e a indústria automotiva. Isso significaria desarticular o Inovar Auto, que atraiu 12 novas montadoras para o país, adensou a cadeia produtiva no setor e está estimulando a pesquisa, desenvolvimento e inovação dessa indústria. Também significaria retomar o processo de desnacionalização de nossa indústria de autopeças, revertendo os esforços recentes. Da mesma forma, a suspensão da exigência de conteúdo local na cadeia de petróleo e gás desmobilizaria a capacidade de nossos estaleiros. Sofreriam, ainda, duro impacto os esforços de inovação e agregação de valor da indústria de fármacos e de tecnologia da informação. A indústria de defesa também foi abandonada no programa de governo, apesar de ser estratégica para a soberania e o desenvolvimento tecnológico, pois demanda muita pesquisa e alta tecnologia, e para a balança comercial, pois essa indústria atualmente exporta US$2,5 bilhões por ano. O Brasil vem desenvolvendo importantes projetos, como a construção de submarinos para a defesa do pré-sal, os aviões cargueiros (modelo KC 390 da Embraer), Super Tucano, os novos caças Grippen, o sistema de monitoramento da Amazônia Azul, os Helicópteros Militares HX-BR, o Sisfron (Sistema de Monitoramento de Fronteiras), o veículo blindado Guarani e os veículos aéreos não tripulados – VANTS, muito importantes para a vigilância de nossas fronteiras.

247 – O programa fala em reordenar gastos públicos para ganhar eficiência...

Mercadante – Como já disse, Marina Silva propõe aumentar significativamente o gasto com programas sociais, prevendo um incremento de pelo menos R$ 260 bilhões mas em nenhum momento diz de onde virão os recursos necessários. Apenas diz que esse aumento seria financiado com ganhos de eficiência da administração pública e pelo fim do componente fiscal dos subsídios aos bancos públicos. Sem ingenuidade, nem demagogia, para se chegar a um ganho de eficiencia dessa ordem exigiria arrochar salários, desestruturar carreiras e reduzir o atual quadro de servidores públicos. É bom lembrar que quando se tentou algo do gênero, o resultado foi o acúmulo de processos e condenações da União e a desestruturação de unidades chave, para o planejamento e a gestão do Estado. Ela também propõe cortar as linhas de crédito subsidiado e direcionados que beneficiam a agricultura, a habitação popular, a indústria, a infraestrutura e os exportadores.

247 – Os aliados de Marina dizem que suas linhas de política externa se baseiam no pragmatismo, que seria uma contraposição a diplomacia de Lula. O programa assume o ponto de vista da diplomacia tucana na qual o país só teria a ganhar com uma “integração subordinada” ao governo dos EUA.

Mercadante – As propostas de política externa da candidata representam a retomada da estratégia de inserção subordinada do Brasil na economia mundial. Sua concepção de integração às cadeias globais de produção vem acompanhada da renúncia a todas as formas de política industrial. O governo brasileiro abriria mão dos principais instrumentos necessários para o Brasil assegurar uma posição nessas cadeias globais, com bons empregos à população, impulso à inovação tecnológica e aumento do conteúdo nacional de nossos produtos. O México é um exemplo do alinhamento comercial defendido por Marina. De 1999 a 2010, o PIB per capita em Paridade de Poder de Compra (PPP) do México cresceu 9,1%, enquanto que o do Brasil cresceu 31%. No mesmo período, pobreza atingiu 51% da população mexicana, enquanto que o Brasil, de 2001 a 2012, presenciou uma redução sem precedentes da desigualdade e da pobreza extrema, que caiu de 14% para 3,5% de acordo com a ONU. Qual o modelo de desenvolvimento parece mais adequado: o conduzido por Lula e Dilma ou o adotado pelo México? De forma envergonhada, ela também propõe relativizar o Mercosul e a estratégia de interação regional ou mesmo abandoná-lo. Mas ao se associar aos ataques conservadores ao Mercosul, ela omite que nos últimos anos o comércio mundial cresceu 180%, enquanto nossas exportações para o Mercosul cresceram mais de 600%, com destaque para as nossas exportações de bens industriais. Além disso, o aprofundamento da integração produtiva e da infraestrutura regional vem permitindo ao Brasil, a maior economia do bloco, firmar-se como líder na região. Foi precisamente nos últimos anos que fortalecemos o Mercosul, que constituímos a Unasul e a Celac, em um ambiente de paz e democracia na região, em contraposição a um passado golpista e de longos períodos ditatoriais. O Brasil não pode negligenciar seu papel regional, pois respondemos por mais da metade do território, do PIB e da população da América do Sul.

247 – E os BRICS?

Mercadante – A outra grande frente de atuação de sua política externa conservadora conduz ao enfraquecimento da cooperação no âmbito dos BRICS, por meio da imposição de constrangimentos à cooperação, subordinando a agenda de cooperação a temas como meio ambiente e direitos humanos. Se essa postura pudesse ser levada a sério, o programa deveria propor que as relações com os EUA deveriam subordinar-se a discussão de direitos humanos em Guantánamo ou e emissões de CO2,pois este é o maior emissor mundial e não é signatário do Tratado de Kyoto. Obviamente, isso a candidata não propõe. Na prática, essa proposta esvazia os BRICS e compromete os esforços para a criação de novos mecanismos de promoção do desenvolvimento e estabilidade financeira, como o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS e o Arranjo Contingente de Reservas, que estão se constituindo instrumentos mais avançados que o Banco Mundial e o FMI.

Isso significa renunciar ao esforço de construção de um mundo multipolar e o retorno à lógica de inserção subordinada aos países desenvolvidos, cujo maior símbolo era o projeto de inserção na Alca. Naquela época, acumulávamos déficits comerciais de US$ 8,6 bilhões. Muito diferente da política externa e comercial dos governos Lula e Dilma, em que se acumularam superávits comerciais da ordem de US$ 312 bilhões e US$ 380 bilhões em reservas internacionais, ao mesmo tempo em que nossa diplomacia se ampliou e se diversificou em todo o mundo.

247 – Quando fala em governo dos "melhores" que ela mesma vai escolher, Marina expressa um grande desprezo pelos partidos políticos, em benefício de relações pessoais, de personalidades, de homens e mulheres providenciais.

Mercadante – Apesar de ter sido vereadora, deputada estadual, senadora por dois mandatos e ministra por cinco anos, e de ter passado por três partidos e por um projeto mal sucedido de organização partidária, Marina Silva pretende se apresentar como porta-voz de uma “nova política”. Seu discurso se propõe superar problemas históricos da democracia brasileira, tais como o predomínio de interesses econômicos e sociais hegemônicos, a concentração do poder político nas mãos de partidos tradicionais e de grupos oligárquicos, a existência de um presidencialismo de coalizão, que favorece o fisiologismo e a corrupção, e a baixa qualidade dos mecanismos de participação popular e de transparência pública. Seus ataques aos partidos políticos têm sido direcionados especialmente ao PT, partido em que ela militou por 27 anos, cuja militância foi responsável pela sua condução a todos seus mandatos eletivos e pela sustentação dos embates políticos que travou ao longo de sua vida pública. A candidata sonha com um presidencialismo construído em torno de personalidades – “os homens de bem”. As grandes crises políticas do país sempre começaram pela ausência de apoio parlamentar, como aconteceu durante os governos Jânio Quadros e Fernando Collor. Ambos tentaram, em sua época, atrair aqueles que eram chamados de "melhores." Os livros de história contam o que aconteceu.

247 – Como avaliar a proposta de reforma política do programa de Marina?

Mercadante – É inacreditável falar em “nova politica” sem enfrentar um tema central, que está na raiz de quase todos os escândalos de corrupção envolvendo políticos – o financiamento das campanhas eleitorais por empresas privadas. .Em seu programa de governo, a candidata apenas se compromete a aperfeiçoar os mecanismos de fiscalização e prestação de contas das doações privada. Ela caminha na direção contrária à do Supremo Tribunal Federal, que está prestes a proibir as doações de empresas privadas. Recentemente, até o Senado norte-americano deu início a um processo parlamentar para aprovar uma emenda constitucional que permitirá restringir definitivamente a influência de empresas privadas do processo eleitoral. Por ironia, nos últimos dias, Marina Silva passou a falar em financiamento público de campanha, em mais um recuo em seu programa de governo.

247 – Mas o programa também fala de mudanças no horário político, na estrutura dos partidos...

Mercadante – É uma proposta que enfraquece, sobretudo, os partidos programáticos. Por exemplo, a implementação da “Verdade Eleitoral” representa o fim do quociente eleitoral, o que enfraqueceria principalmente os partidos políticos que têm em seus quadros lideranças políticas bem votadas. Isso seria agravado com a possibilidade de candidaturas avulsas aos cargos proporcionais, que favoreceria os candidatos com alta exposição pública, grande poder econômico, ou representantes de “causas” que já se elegem dentro da atual estrutura partidária, mas que deixariam de contribuir para o quociente eleitoral e para a vida partidária. O que enfraquece justamente os partidos de conteúdo programático, para os quais é essencial o acúmulo de debates e candidaturas. Sua proposta de revisão da distribuição do tempo para a propaganda eleitoral também reduz a importância do voto do eleitor que determina o tamanho das bancadas parlamentares, critério utilizado na determinação de parte do tempo de televisão. Na sua visão, as bancadas parlamentares não seriam representativas da sociedade brasileira. Ou seja, a candidata acredita possuir uma fórmula “melhor” do que o voto do eleitor para definir essa representatividade, mas não diz qual é essa fórmula. E ao relativizar o tamanho das bancadas como critério para a distribuição de tempo proporcional de televisão, acena com a distribuição desse tempo de forma isonômica entre todos os candidatos, o que favoreceria as legendas de aluguel, sempre dispostas a usar o tempo de TV como moeda de troca, estimulando ainda mais a fragmentação partidária.

247 – O programa fala também de plebiscitos e referendos...

Mercadante – Sua única proposta modernizadora é, na verdade, uma bandeira histórica do PT, que introduziu na gestão pública diversas formas de participação popular, como conferências nacionais e regionais, orçamento participativo e conselhos da sociedade civil É bom lembrar que, desde 2010, a candidata propõe a realização de consultas populares com o propósito de se esquivar do debate de temas polêmicos, como a descriminalização do aborto e da maconha. Em nenhum momento, porém, a candidata propõe submeter à consulta popular temas de amplo interesse, como suas proposta de independência legal do Banco Central, e de retração do papel dos Bancos Públicos. Marina é uma política profissional há décadas e agora se filiou a um partido extremamente pragmático, tanto na sua composição interna, como nas alianças políticas. A sua campanha aglutinou predominantemente quadros políticos e ideólogos do pensamento conservador. A nova política é uma retórica cada dia mais fragilizada pelos compromissos, composição de forças, atitudes e alianças da candidata.

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