Ao 247, Mercadante disseca o programa de Marina
Por Paulo Moreira Leite
Aos 60 anos de idade, Aloizio Mercadante encontra-se no ponto mais alto
de quatro décadas de uma atividade politica iniciada como liderança
estudantil na luta contra regime militar, no início dos anos 1970. Como
ministro-chefe da Casa Civil, ele representa os olhos e os ouvidos da
presidente Dilma Rousseff, cuja confiança conquistou depois de um
retorno tímido a Brasília, como ministro de Ciência e Tecnologia, quase
um cargo de consolação após a derrota na disputa pelo governo de São
Paulo, em 2010. Promovido a ministro da Educação em 2012, Mercadante
assumiu a Casa Civil no início deste ano, quando Gleisi Hoffman se
afastou para disputar o governo do Paraná. Escalado, inicialmente, para
administrar o governo enquanto a própria Dilma enfrentava a dupla
jornada de presidente e candidata, Mercadante tornou-se, nas últimas
semanas, uma peça importante na campanha pela reeleição, também.
Com uma formação acadêmica que vem da Faculdade de Economia da
Universidade de São Paulo, reforçada por cursos de pós-Graduação na
Universidade de Campinas, Mercadante dedicou um de seus livros mais
recentes, ("Brasil - A construção retomada") a Celso Furtado, o grande
mestre do pensamento desenvolvimentista, autor de "Brasil- A construção
interrompida", obra que foi uma das fontes de inspiração da vida
acadêmica do ministro. Ninguém poderia imaginar que, em 2014, no calor
da disputa presidencial, um assessor de Marina Silva colocaria em dúvida
as ideias do mestre para dar combate a política econômica do governo
Dilma. Foram críticas "preconceituosas e rebaixadas," rebate Mercadante,
nesta entrevista exclusiva ao 247.
Conhecido, nas assembleias estudantis, como uma das oratórias mais
calibradas de sua geração, Aloizio Mercadante abriu um espaço em sua
agenda desumana, na semana passada, para dissecar, ponto a ponto, o
programa de governo de Marina Silva. A entrevista:
247 – O senhor já definiu o programa de Marina como uma colcha retalhos,
que tenta unir o Neo-Liberalismo de Collor – FHC com políticas sociais e
ampliação do mercado interno do governo Lula. Como entender isso?
Aloizio Mercadante – Estamos discutindo o futuro do Brasil e, portanto, o
debate democrático deve ser feito de forma rigorosa e profunda. Convivi
com Marina Silva por décadas, no Partido dos Trabalhadores (PT) e como
parlamentar da mesma bancada no Congresso Nacional. Minha análise,
extremamente crítica à candidatura de Marina, leva em conta a composição
de forças heterogêneas, predominantemente conservadoras, que estão
reunidas em torno de sua candidatura e as inconsistências e contradições
presentes em seu programa de governo no discurso de campanha, que
merecem reflexão criteriosa. O programa de governo de Marina Silva é uma
colcha de retalhos, mal costurada. Além do improviso e da precariedade
de suas propostas, são gritantes a quantidade de plágios já comprovados e
os sucessivos recuos diante de diversos temas.
247 - Por que isso acontece?
Mercadante – Isso reflete o caráter de sua candidatura, que não é
resultado do acúmulo de debates que costumam ocorrer no interior dos
partidos políticos estruturados. Nos últimos anos, a candidata passou
por três partidos e tentou, sem sucesso, criar um novo partido, mas não
conseguiu reunir em torno de si, de forma organizada, quadros técnicos e
políticos que fossem capazes de formular coletivamente um programa de
governo à altura dos desafios que o país tem pela frente. O que ela fez
foi costurar uma aliança política que não passa de uma aglomeração de
personalidades e de apoios difusos. Por isso, seu programa acaba
reunindo, às pressas, um conjunto de propostas contraditórias que
denunciam sua tentativa de acomodar demandas de diversos setores, sem
compromisso com a coerência e a eficácia de suas promessas de campanha.
247 – Qual a grande contradição?
Mercadante – A maior contradição está na opção em radicalizar o
projeto neoliberal e a política econômica ortodoxa, e, ao mesmo tempo,
dizer que vai ampliar as políticas sociais postas em prática nos últimos
doze anos. Ela ignora que não há diálogo possível entre suas propostas
neoliberais para a área econômica, inspiradas nos governos Collor e FHC,
e as políticas de inclusão social dos governos Lula e Dilma. Na
verdade, nunca uma candidatura presidencial levou tão longe seu
compromisso com o Estado mínimo e políticas neoliberais tardias. Isso
não aconteceu nem mesmo nos momentos de profunda crise econômica, em que
o país esteve sujeito aos pacotes do FMI.
247 – Por exemplo....
Mercadante – Na área econômica, ela se compromete com uma
politica de choque nos preços de energia, “o tarifaço”, que teria forte
impacto na inflação; com a independência jurídica do Banco Central, na
contramão de toda a reflexão teórica e política pós-crise de 2008 sobre o
papel do Estado na regulação do sistema financeiro; com a criação de um
Conselho Nacional de Responsabilidade Fiscal, formado por tecnocratas
“independentes e sem qualquer vínculo com o governo”; com a redução do
papel dos bancos públicos e do crédito direcionado para a indústria, a
agricultura, a construção civil e para os consumidores de baixa renda; e
com a eliminação da política de conteúdo local, que poderá desarticular
principalmente a industrial naval e a cadeia de petróleo e gás. Essas
medidas implicam delegar aos credores da dívida pública e aos bancos
privados o poder de arbitrar as taxas de juros e de câmbio e a regulação
do sistema financeiro. Elas reduziriam drasticamente o poder de um
governo democraticamente eleito para atuar no campo fiscal e da política
orçamentária. Outro efeito é suprimir o papel do Estado na execução de
políticas anticíclicas, como aconteceu a partir de 2008, que se
mostraram cruciais para o enfrentamento da crise internacional e para
fomentar os investimentos e aumentar o emprego.
247 – O que está errado no programa?
Mercadante – A conta não fecha. Na área social a candidata
promete elevar gastos em cerca de R$ 260 bilhões, o que equivale a
aproximadamente 5% do PIB. Quer antecipar a meta de 10% do PIB para a
educação (R$ 170 bilhões/ano), prevista no PNE, elevar o gasto com saúde
para 10% da receita corrente bruta (R$ 40 bilhões/ano), aumentar em
dois pontos percentuais o Fundo de Participação dos Municípios (R$ 9
bilhões/ano), estender o Bolsa Família para mais 10 milhões de famílias
(R$ 19 bilhões/ano), acabar com o Fator Previdenciário (R$12
bilhões/ano), criar o passe livre estudantil (R$ 12 bilhões/ano), e
multiplicar por 10 orçamento do Fundo Nacional de Segurança Pública (R$
3,7 bilhões). Marina sabe muito bem que na vida pública é preciso
eleger prioridades. E o que ela faz é desenhar uma política ortodoxa e
recessiva que conflita com suas promessas sociais. Como a conta não
fecha, ela não tem como esconder a real prioridade, que será o ajuste
fiscal ortodoxo. Ao mencionar as promessas para a área social, Eduardo
Giannetti, seu principal assessor econômico, enfatizou que “os
compromissos assumidos no programa serão cumpridos à medida que as
condições viabilizarem, sem prejuízo do equilíbrio fiscal. ” Ao dizer
isso, Giannetti está avisando: se a conta não fechar os pobres vão ter
de esperar.
247 – Como seria isso?
Mercadante – No programa de Marina, o investimento social será
subordinado à meta fiscal, estabelecida por um novo organismo chamado
Conselho de Responsabilidade Fiscal. É este conselho, independente do
governo, a quem competiria assegurar o superávit primário. Ou seja, se
as contas apertarem -- e nós sabemos que isso acontece nos melhores
governos -- os pobres, novamente, vão ser esquecidos na hora de definir
sua parte no orçamento público. O programa de Marina traz de volta um
neoliberalismo tardio e uma política econômica ortodoxa, que, na
prática, representa a negação da estratégia adotada nos últimos 12 anos,
baseada na decisão de fazer da inclusão social e da distribuição de
renda os eixos estruturantes do desenvolvimento econômico. Os governos
Lula e Dilma foram responsáveis pela maior distribuição de renda de
nossa história e pela saída do Brasil do Mapa da Fome, segundo a ONU. Na
politica econômica proposta por Marina, o social é apenas uma variável
de ajuste da política fiscal, que foi terceirizada para o seu comitê de
tecnocratas.
247 – No programa de governo, a candidata omite o papel do pré-sal e
não ressalta os avanços recentes do país com energia eólica. Por que?
Mercadante – A Marina tem uma resistência antiga e anacrônica ao
petróleo e ao pré-sal. Ela ignora a importância do petróleo na matriz
energética mundial, não apenas como fonte de energia, mas também sob a
forma de produtos e serviços. São milhares de empregos gerados na
exploração e distribuição, na petroquímica e em tantos outros setores em
que o petróleo e seus derivados são empregados. O setor também é
responsável por estimular a pesquisa, o desenvolvimento e a inovação,
com impacto direto na produtividade da indústria e da economia como um
todo. Em 2009, ao ser entrevistada no programa Roda Viva, Marina
defendeu que investir na exploração do pré-sal era uma “aposta errada”,
um erro estratégico, pois os resultados relevantes só viriam em 20 anos.
Nesse prazo, os combustíveis fósseis já teriam sido superados pelos
biocombustíveis de segunda geração. Passados quatro anos, o pré-sal já é
uma realidade, produzindo 540 mil barris/dia. Os governos Lula e Dilma
implantaram o regime de partilha, que define a Petrobras como operadora
única do pré-sal e estabelece uma política de compras públicas e de
incentivo ao conteúdo local. Isso permitiu a construção de 15 novos
estaleiros, que hoje empregam mais 80 mil trabalhadores. Nossa indústria
naval estava destruída e hoje é a quarta do mundo.
247 – Assessores de Marina dizem d que o governo Dilma desenvolve
essa política porque está preso a uma visão ideológica superada.
Mercadante – É inacreditável que uma candidatura presidencial
defenda a compra de nossas plataformas e navios de países asiáticos e
acredite que essa iniciativa possa ter algum efeito positivo sobre o
investimento e o crescimento do Brasil. O único efeito é que os empregos
daqui vão migrar para países do outro lado do mundo, que não abrem mão
de suas políticas de promoção industrial e de comércio exterior. São
essas políticas estratégicas que o coordenador de campanha, Walter
Feldman, considera “doutrinárias” e que, na sua opinião, devem ser
totalmente revistas. Essa revisão fará com que o pré-sal deixe de ser
explorado pela Petrobras como única operadora, sob o regime de partilha.
A eliminação do regime de partilha implicariam entregar às grandes
empresas privadas internacionais nossa reservas estratégicas, e também
reduziria significativamente a participação do povo brasileiro na
distribuição dessa importante riqueza. A vinculação dos royalties do
pré-sal e de metade do Fundo Social para as áreas de educação e saúde é o
melhor exemplo de como transformar uma riqueza não-renovável em riqueza
permanente e essencial para toda sociedade.
247 – Qual seria o impacto de medidas como redução do uso de
combustíveis fósseis, criar uma tarifa sobre emissão de CO2,
reestabelecer a CIDE?
Mercadante – Essas medidas não apenas trariam um imediato aumento
dos preços dos combustíveis, mas também da energia elétrica gerada por
termelétricas e de todos os produtos e serviços que utilizam, direta ou
indiretamente, derivados de petróleo. É espantoso que o programa de
governo de Marina nem sequer cite as termoelétricas movidas a
combustíveis fósseis, que têm se mostrado essenciais para a segurança e
economicidade do sistema elétrico, especialmente no último período.
247 – Por que Marina fala em rever o plano de instalação de novas usinas hidrelétricas?
Mercadante – A energia hidrelétrica é outro alvo da candidata.
Hoje, as usinas hidrelétricas são a principal fonte de energia elétrica
do país e os reservatórios são uma forma estratégica de estocar energia.
O Brasil possui algo em torno de 160 GW de potencial hidrelétrico não
aproveitado, metade dele concentrado na região Norte. Recentemente,
Marina declarou que será necessário rever o plano de instalação de novas
Usinas Hidrelétricas na região Norte, subestimando o imenso potencial
disponível e o papel estratégico dessas usinas, de eclusas e de
hidrovias para a nossa logística. No caso das hidrovias, elas são
fundamentais para reduzir os custos logísticos da produção agrícola da
região Centro-Oeste, permitindo também desafogar os portos das regiões
Sul e Sudeste.
247 – Sem pré-sal, sem hidrelétricas, como o país poderia obter a energia de que precisa e vai precisar nos próximos anos?
Mercadante – Além de subestimar o papel estratégico da energia
hidrelétrica para o desenvolvimento sustentável da economia brasileira, o
programa de governo propõe justamente o oposto. Diz que é preciso
reorientar a matriz energética em direção às “fontes renováveis modernas
(solar, eólica, de biomassa, geotermal, das marés, dos biocombustíveis
de segunda geração)”. Não vamos ignorar que nos governos Lula e Dilma o
país já avançou bastante na geração de energia limpa, como eólica, a
solar e a biomassa. A oferta dessas fontes passou de 240MW para 3.101MW.
A oferta de energia eólica vem crescendo entre 30% e 40% ao ano, o que
nos coloca como segundo país que mais investe em geração eólica no
mundo. Essa expansão tem ocorrido em paralelo ao desenvolvimento da
produção doméstica de equipamentos para o setor, fruto das políticas
industriais e de conteúdo local, que são tão duramente criticadas pela
candidata. O problema é que, como ela mesma admite, essas opções devem
trazer maior custo para o consumidor, sem, no entanto, garantir a
segurança energética do país.
247 – Qual a importância desses fatores – custo e segurança – para a economia de um país?
Mercadante – A produção regular de energia a baixo custo é
estratégica para a competividade da economia de qualquer país. Os
Estados Unidos não permitem a exportação do gás de xisto extraído de
suas imensas reservas, recém-descobertas. Eles estão mantendo os preços
extremamente baixos para dar competitividade à sua indústria, mesmo com o
país ocupando a vanguarda tecnológica nas áreas de produção de energias
limpas.
247 – E a energia nuclear?
Mercadante – Os preconceitos de Marina se estendem à energia
nuclear, que simplesmente é ignorada em seu programa de governo. Com
Angra I e II e a construção de Angra III, o país continuará a gerar
energia elétrica de baixo custo e fornecimento constante, ao contrário
da energia gerada por usinas eólicas, solares e de marés, que dependem
fortemente dos ciclos da natureza. O desenvolvimento da indústria
nuclear também é essencial para a área da saúde.
247 – Marina mostrou-se capaz de recusar pesquisas nucleares para fins medicinais.
Mercadante – Em junho de 2010, a então senadora Marina Silva foi a
única a votar contra a PEC 100/2007 que autorizava a produção,
comercialização e utilização de produtos de radioisótopos para fins
medicinais, sob supervisão da Comissão Nacional de Energia Nuclear. Na
segunda votação dessa mesma PEC , quando se viu totalmente isolada no
plenário, ela mudou o voto.
247 – É razoável criticar o desempenho do Brasil na proteção do meio ambiente?
Mercadante – A ONU reconhece que o Brasil é o país que mais
contribuiu para a redução de emissões de gases de efeito estufa de todo
planeta. Já atingimos 80% da meta voluntária que assumimos para 2020, de
reduzir de 39% a 32% as emissões. O que o Brasil já reduziu em um ano
equivale a todas as emissões do Reino Unido por igual período. Outra
dimensão relevante é a redução do desmatamento da Amazônia.
247 – Qual o desempenho nessa questão?
Mercadante – Quando o presidente Lula assumiu o governo, tínhamos
21 mil km2 de desmatamento/ano. Durante a gestão de Marina no
Ministério do Meio Ambiente, o desmatamento bateu recorde e chegou a 24
mil km2, e em 2007 reduzimos para cerca de 11 mil km2. Na gestão da
presidente Dilma, tivemos as menores taxas de desmatamento da história
da Amazônia, em torno de 5 mil km2 ano. O Brasil está construindo uma
estratégia de desenvolvimento que combina crescimento econômico,
inclusão social e sustentabilidade ambiental.
247 – Ao falar que pretende governar com os melhores -- sem explicar
melhores para que -- Marina recupera o mito da eficiência técnica, que
era o discurso favorito do regime militar e de todos governantes que
não prestam contas de seus atos.
Mercadante – O programa de governo de Marina Silva traz duas
propostas para a área econômica que transferem decisões políticas
estratégicas para as mãos de tecnocratas. A proposta de independência
legal do Banco Central, retira da população o direito de influir, ainda
que indiretamente, em decisões que afetam o seu dia a dia, como, por
exemplo, se o Banco Central deve considerar os impactos de suas decisões
sobre o emprego e a renda. A constituição brasileira apenas prevê a
independência dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. O
que ela está propondo é praticamente um quarto poder: o poder dos
bancos, traduzido em um Banco Central com uma diretoria blindada diante
de qualquer governo democraticamente eleito pelo povo. A autonomia
operacional do BC vem sendo praticada há décadas no Brasil, mas a
independência completa representa um retrocesso na relação entre o
governo democraticamente eleito e o capital financeiro. É inacreditável
que essa proposta ganhe força depois da crise financeira internacional
de 2008. Recentemente, o presidente do Banco da Inglaterra, Mark Carney,
admitiu que a busca exclusiva do combate à inflação por um Banco
central independente “tornou-se uma distração perigosa para a economia”.
Economistas laureados com o Nobel e ex-economistas chefe do FMI e do
Banco Mundial, como Joseph Stiglitz, Paul Krugman e Simon Johnson,
destacam que os excessos dos bancos centrais independentes, sempre
dispostos a atender os pleitos dos mercados financeiros em matéria de
regulação bancária e política monetária, estão na raiz da crise de
2008.Também ressaltam que os países com bancos centrais menos
independentes, como o Brasil, a Índia e a China, foram aqueles que
melhor enfrentaram a recente crise internacional. O debate mundial, após
2008, caminhou no sentido contrário ao da proposta de Marina, pois o
que está em pauta é como aprofundar a regulação e o controle sobre o
sistema financeiro, estabelecer regras prudenciais e coibir os riscos e
as consequências econômicas e sociais de novas crises financeiras.
247 – O programa também fala na ampliação do espaço para os bancos privados.
Mercadante – A proposta de independência legal do Banco Central é
agravada quando associada à retração dos bancos públicos na oferta de
crédito. Hoje, os bancos públicos respondem por aproximadamente 50% da
oferta de crédito. Como diz seu principal assessor econômico, Eduardo
Giannetti, a indústria deve se preparar para ser “desmamada”. Outro
economista ligado à campanha, Alexandre Rands, qualifica os empresários
como “prostitutas” na sua relação com os bancos públicos. São visões
preconceituosas e rebaixadas da relação entre o Estado e setor privado,
que, se levadas adiante, terão graves consequências para a indústria e
todo o setor produtivo. Por sinal, também foram preconceituosas e
rebaixadas as críticas ao ilustre brasileiro Celso Furtado e aos
economistas da Unicamp. Não satisfeita em delegar exclusivamente a
técnicos as decisões de política monetária e a regulação do sistema
financeiro, a candidata também propõe delegar a condução da política
fiscal a outro grupo de tecnocratas não eleitos pelo povo, “sem
vinculação a nenhuma instância de governo”: o Conselho Nacional de
Responsabilidade Fiscal. Dessa forma, ela propõe terceirizar
instrumentos fundamentais que os governos democráticos dispõem para a
implementação da política fiscal e orçamentária e o enfrentamento de
crises.
247 – Quais as consequências práticas dessas propostas?
Mercadante – Concebidas sob o pretexto da racionalidade técnica,
elas levam para o caminho da recessão, com o choque de preços de
energia, o encarecimento do crédito, o aperto monetário e fiscal, a
terceirização da politica fiscal e, consequentemente, o rompimento
completo com os compromissos sociais e com a própria estrutura produtiva
do país.
247 – Por que os ataques aos bancos públicos?
Mercadante – O programa de Marina Silva critica duramente os
bancos públicos – que supostamente impediriam o desenvolvimento do
crédito privado e do mercado de capitais – e condena os aportes do
Tesouro nacional ao BNDES, bem como seus critérios na concessão de
financiamentos. Entretanto, a presença e atuação dos bancos públicos têm
sido fundamentais no financiamento de projetos estratégicos para o
nosso desenvolvimento econômico, como grandes obras de infraestrutura e
de modernização da indústria. É evidente que é importante desenvolver o
crédito privado e novos instrumentos de crédito de longo prazo, mas é um
equívoco privatizar o mercado de crédito e abrir mão de instrumentos
públicos, para o investimento de longo prazo A atuação dos bancos
públicos foi muito importante não apenas para a reação à crise de 2008,
mas também para a manutenção de boa parte do dinamismo do mercado
doméstico e para a recuperação do investimento, que permitiram combinar
crescimento econômico com inclusão social. Diante da crise
internacional, a política industrial e os bancos públicos (BB, BNDES,
CEF, BASA, FINEP e BNE) têm sido utilizados pelos governos como
instrumentos de política anticíclica e de renovação da estrutura
produtiva. Nos últimos anos, houve um aumento do ativismo do Estado em
vários países, como os Estados Unidos, o Japão e a Coreia do Sul, para
não mencionar a China, que é o principal exemplo de dinamismo e
utilização de bancos públicos. No fundo, a candidata retoma uma velha
proposta do sistema financeiro, que deseja acabar com o crédito
direcionado e barato para atividades estratégicas em áreas como
agricultura, habitação e investimento de longo prazo. Ou seja, estariam
comprometidos os R$ 180 bilhões de reais/safra para a agricultura
comercial e familiar, previstos no plano Safra 2014-2015, os R$ 190
bilhões de reais/ano destinados pelo BNDES principalmente à indústria e
infraestrutura, e os recursos destinados aos programas de financiamento à
habitação popular, como o programa Minha Casa Minha Vida. Com isso, o
crédito ficaria mais caro, tanto para quem produz, quanto para quem quer
comprar sua casa própria, derrubando assim os Investimentos e
empurrando nossa economia para um ajuste ortodoxo e recessivo. Marina
propõe eliminar a política de compras governamentais e conteúdo local.
Os principais alvos de suas medidas são a cadeia de petróleo e gás e a
indústria automotiva. Isso significaria desarticular o Inovar Auto, que
atraiu 12 novas montadoras para o país, adensou a cadeia produtiva no
setor e está estimulando a pesquisa, desenvolvimento e inovação dessa
indústria. Também significaria retomar o processo de desnacionalização
de nossa indústria de autopeças, revertendo os esforços recentes. Da
mesma forma, a suspensão da exigência de conteúdo local na cadeia de
petróleo e gás desmobilizaria a capacidade de nossos estaleiros.
Sofreriam, ainda, duro impacto os esforços de inovação e agregação de
valor da indústria de fármacos e de tecnologia da informação. A
indústria de defesa também foi abandonada no programa de governo, apesar
de ser estratégica para a soberania e o desenvolvimento tecnológico,
pois demanda muita pesquisa e alta tecnologia, e para a balança
comercial, pois essa indústria atualmente exporta US$2,5 bilhões por
ano. O Brasil vem desenvolvendo importantes projetos, como a construção
de submarinos para a defesa do pré-sal, os aviões cargueiros (modelo KC
390 da Embraer), Super Tucano, os novos caças Grippen, o sistema de
monitoramento da Amazônia Azul, os Helicópteros Militares HX-BR, o
Sisfron (Sistema de Monitoramento de Fronteiras), o veículo blindado
Guarani e os veículos aéreos não tripulados – VANTS, muito importantes
para a vigilância de nossas fronteiras.
247 – O programa fala em reordenar gastos públicos para ganhar eficiência...
Mercadante – Como já disse, Marina Silva propõe aumentar
significativamente o gasto com programas sociais, prevendo um incremento
de pelo menos R$ 260 bilhões mas em nenhum momento diz de onde virão os
recursos necessários. Apenas diz que esse aumento seria financiado com
ganhos de eficiência da administração pública e pelo fim do componente
fiscal dos subsídios aos bancos públicos. Sem ingenuidade, nem
demagogia, para se chegar a um ganho de eficiencia dessa ordem exigiria
arrochar salários, desestruturar carreiras e reduzir o atual quadro de
servidores públicos. É bom lembrar que quando se tentou algo do gênero, o
resultado foi o acúmulo de processos e condenações da União e a
desestruturação de unidades chave, para o planejamento e a gestão do
Estado. Ela também propõe cortar as linhas de crédito subsidiado e
direcionados que beneficiam a agricultura, a habitação popular, a
indústria, a infraestrutura e os exportadores.
247 – Os aliados de Marina dizem que suas linhas de política externa
se baseiam no pragmatismo, que seria uma contraposição a diplomacia de
Lula. O programa assume o ponto de vista da diplomacia tucana na qual o
país só teria a ganhar com uma “integração subordinada” ao governo dos
EUA.
Mercadante – As propostas de política externa da candidata
representam a retomada da estratégia de inserção subordinada do Brasil
na economia mundial. Sua concepção de integração às cadeias globais de
produção vem acompanhada da renúncia a todas as formas de política
industrial. O governo brasileiro abriria mão dos principais instrumentos
necessários para o Brasil assegurar uma posição nessas cadeias globais,
com bons empregos à população, impulso à inovação tecnológica e aumento
do conteúdo nacional de nossos produtos. O México é um exemplo do
alinhamento comercial defendido por Marina. De 1999 a 2010, o PIB per
capita em Paridade de Poder de Compra (PPP) do México cresceu 9,1%,
enquanto que o do Brasil cresceu 31%. No mesmo período, pobreza atingiu
51% da população mexicana, enquanto que o Brasil, de 2001 a 2012,
presenciou uma redução sem precedentes da desigualdade e da pobreza
extrema, que caiu de 14% para 3,5% de acordo com a ONU. Qual o modelo de
desenvolvimento parece mais adequado: o conduzido por Lula e Dilma ou o
adotado pelo México? De forma envergonhada, ela também propõe
relativizar o Mercosul e a estratégia de interação regional ou mesmo
abandoná-lo. Mas ao se associar aos ataques conservadores ao Mercosul,
ela omite que nos últimos anos o comércio mundial cresceu 180%, enquanto
nossas exportações para o Mercosul cresceram mais de 600%, com destaque
para as nossas exportações de bens industriais. Além disso, o
aprofundamento da integração produtiva e da infraestrutura regional vem
permitindo ao Brasil, a maior economia do bloco, firmar-se como líder na
região. Foi precisamente nos últimos anos que fortalecemos o Mercosul,
que constituímos a Unasul e a Celac, em um ambiente de paz e democracia
na região, em contraposição a um passado golpista e de longos períodos
ditatoriais. O Brasil não pode negligenciar seu papel regional, pois
respondemos por mais da metade do território, do PIB e da população da
América do Sul.
247 – E os BRICS?
Mercadante – A outra grande frente de atuação de sua política
externa conservadora conduz ao enfraquecimento da cooperação no âmbito
dos BRICS, por meio da imposição de constrangimentos à cooperação,
subordinando a agenda de cooperação a temas como meio ambiente e
direitos humanos. Se essa postura pudesse ser levada a sério, o programa
deveria propor que as relações com os EUA deveriam subordinar-se a
discussão de direitos humanos em Guantánamo ou e emissões de CO2,pois
este é o maior emissor mundial e não é signatário do Tratado de Kyoto.
Obviamente, isso a candidata não propõe. Na prática, essa proposta
esvazia os BRICS e compromete os esforços para a criação de novos
mecanismos de promoção do desenvolvimento e estabilidade financeira,
como o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS e o Arranjo Contingente
de Reservas, que estão se constituindo instrumentos mais avançados que o
Banco Mundial e o FMI.
Isso significa renunciar ao esforço de construção de um mundo multipolar
e o retorno à lógica de inserção subordinada aos países desenvolvidos,
cujo maior símbolo era o projeto de inserção na Alca. Naquela época,
acumulávamos déficits comerciais de US$ 8,6 bilhões. Muito diferente da
política externa e comercial dos governos Lula e Dilma, em que se
acumularam superávits comerciais da ordem de US$ 312 bilhões e US$ 380
bilhões em reservas internacionais, ao mesmo tempo em que nossa
diplomacia se ampliou e se diversificou em todo o mundo.
247 – Quando fala em governo dos "melhores" que ela mesma vai
escolher, Marina expressa um grande desprezo pelos partidos políticos,
em benefício de relações pessoais, de personalidades, de homens e
mulheres providenciais.
Mercadante – Apesar de ter sido vereadora, deputada estadual,
senadora por dois mandatos e ministra por cinco anos, e de ter passado
por três partidos e por um projeto mal sucedido de organização
partidária, Marina Silva pretende se apresentar como porta-voz de uma
“nova política”. Seu discurso se propõe superar problemas históricos da
democracia brasileira, tais como o predomínio de interesses econômicos e
sociais hegemônicos, a concentração do poder político nas mãos de
partidos tradicionais e de grupos oligárquicos, a existência de um
presidencialismo de coalizão, que favorece o fisiologismo e a corrupção,
e a baixa qualidade dos mecanismos de participação popular e de
transparência pública. Seus ataques aos partidos políticos têm sido
direcionados especialmente ao PT, partido em que ela militou por 27
anos, cuja militância foi responsável pela sua condução a todos seus
mandatos eletivos e pela sustentação dos embates políticos que travou ao
longo de sua vida pública. A candidata sonha com um presidencialismo
construído em torno de personalidades – “os homens de bem”. As grandes
crises políticas do país sempre começaram pela ausência de apoio
parlamentar, como aconteceu durante os governos Jânio Quadros e Fernando
Collor. Ambos tentaram, em sua época, atrair aqueles que eram chamados
de "melhores." Os livros de história contam o que aconteceu.
247 – Como avaliar a proposta de reforma política do programa de Marina?
Mercadante – É inacreditável falar em “nova politica” sem
enfrentar um tema central, que está na raiz de quase todos os escândalos
de corrupção envolvendo políticos – o financiamento das campanhas
eleitorais por empresas privadas. .Em seu programa de governo, a
candidata apenas se compromete a aperfeiçoar os mecanismos de
fiscalização e prestação de contas das doações privada. Ela caminha na
direção contrária à do Supremo Tribunal Federal, que está prestes a
proibir as doações de empresas privadas. Recentemente, até o Senado
norte-americano deu início a um processo parlamentar para aprovar uma
emenda constitucional que permitirá restringir definitivamente a
influência de empresas privadas do processo eleitoral. Por ironia, nos
últimos dias, Marina Silva passou a falar em financiamento público de
campanha, em mais um recuo em seu programa de governo.
247 – Mas o programa também fala de mudanças no horário político, na estrutura dos partidos...
Mercadante – É uma proposta que enfraquece, sobretudo, os
partidos programáticos. Por exemplo, a implementação da “Verdade
Eleitoral” representa o fim do quociente eleitoral, o que enfraqueceria
principalmente os partidos políticos que têm em seus quadros lideranças
políticas bem votadas. Isso seria agravado com a possibilidade de
candidaturas avulsas aos cargos proporcionais, que favoreceria os
candidatos com alta exposição pública, grande poder econômico, ou
representantes de “causas” que já se elegem dentro da atual estrutura
partidária, mas que deixariam de contribuir para o quociente eleitoral e
para a vida partidária. O que enfraquece justamente os partidos de
conteúdo programático, para os quais é essencial o acúmulo de debates e
candidaturas. Sua proposta de revisão da distribuição do tempo para a
propaganda eleitoral também reduz a importância do voto do eleitor que
determina o tamanho das bancadas parlamentares, critério utilizado na
determinação de parte do tempo de televisão. Na sua visão, as bancadas
parlamentares não seriam representativas da sociedade brasileira. Ou
seja, a candidata acredita possuir uma fórmula “melhor” do que o voto do
eleitor para definir essa representatividade, mas não diz qual é essa
fórmula. E ao relativizar o tamanho das bancadas como critério para a
distribuição de tempo proporcional de televisão, acena com a
distribuição desse tempo de forma isonômica entre todos os candidatos, o
que favoreceria as legendas de aluguel, sempre dispostas a usar o tempo
de TV como moeda de troca, estimulando ainda mais a fragmentação
partidária.
247 – O programa fala também de plebiscitos e referendos...
Mercadante – Sua única proposta modernizadora é, na verdade, uma
bandeira histórica do PT, que introduziu na gestão pública diversas
formas de participação popular, como conferências nacionais e regionais,
orçamento participativo e conselhos da sociedade civil É bom lembrar
que, desde 2010, a candidata propõe a realização de consultas populares
com o propósito de se esquivar do debate de temas polêmicos, como a
descriminalização do aborto e da maconha. Em nenhum momento, porém, a
candidata propõe submeter à consulta popular temas de amplo interesse,
como suas proposta de independência legal do Banco Central, e de
retração do papel dos Bancos Públicos. Marina é uma política
profissional há décadas e agora se filiou a um partido extremamente
pragmático, tanto na sua composição interna, como nas alianças
políticas. A sua campanha aglutinou predominantemente quadros políticos e
ideólogos do pensamento conservador. A nova política é uma retórica
cada dia mais fragilizada pelos compromissos, composição de forças,
atitudes e alianças da candidata.
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