“Como é que a gente faz hoje quando entra num táxi e o motorista diz que
tempos bons eram os da ditadura?”, me perguntou o amigo Nirlando
Beirão.
Diz que:
No tempo da ditadura, a gente não podia escrever sobre o tempo da
ditadura, nem qualificar o regime como uma ditadura. No tempo da
ditadura, ao invés de uma análise crítica sobre a ditadura, digo regime,
neste espaço teria um poema de Camões ou uma receita de bolo, pois
seria censurada.
Todo mundo que era contra a ditadura era comunista. Todos se tornaram
suspeitos, subversivos em potencial. E muitos que, em 1964, conspiraram
com os militares, na missão de impedir que comunistas tomassem o poder, e
o Brasil se transformasse numa diabólica ditadura do proletário,
perceberam a manobra e foram depois acusados de ligações com comunistas.
No primeiro ato da ditadura, o AI-1 (Ato Institucional Número 1),
baixado pela Junta Militar em 9 de abril de 1964, cassaram os opositores
dos comunistas, os trabalhistas: João Goulart, Leonel Brizola, Darcy
Ribeiro, parte da bancada do PTB, partido fundado por Getúlio Vargas,
como Almino Afonso e meu pai, Jânio Quadros, Miguel Arraes, o deputado
católico Plínio de Arruda Sampaio, o economista Celso Furtado, o
jornalista Samuel Weiner, até o presidente da Petrobras, marechal Osvino
Alves. Nenhum deles era comunista.
Entre outros cassados, estavam membros da corporação que mais
perseguições sofreu durante a ditadura: os próprios militares, como o
general-de-brigada Assis Brasil, o chefe do Gabinete Militar, Luís
Tavares da Cunha Melo, e os almirantes Cândido de Aragão e Araújo
Suzano. Milhares de oficiais foram expulsos das Forças Armadas durante a
ditadura.
Bem antes ditadura, o PCB (Partido Comunista do Brasil) já era ilegal, e
seus líderes, eles, sim, comunistas, viviam na clandestinidade. A
intenção do Golpe de 64 era impedir o avanço comunista no Brasil e
restaurar a democracia em dois anos. Não demorou muito, o ex-presidente
Juscelino Kubitschek, candidato à reeleição, foi cassado acusado de
corrupção e colaborar com comunistas.
No primeiro teste eleitoral, em 1965, não foram eleitos os candidatos
dos militares em Minas Gerais e Guanabara. Baixaram o AI-2 (Ato
Institucional Número Dois). Partidos políticos foram extintos. Poder
Judiciário sofreu intervenção. Foram reabertos processos de cassação.
Carlos Lacerda, então aliado, dormiu conspirador e acordou subversivo.
O novo partido da situação, Arena, não engrenava. Iria ser derrotado nos
Estados mais populosos. A paciência dos militares se esgotou: o AI-3
foi baixado em 1966, determinando que eleição de governadores seria
indireta, executada por colégios eleitorais, e prefeitos das capitais,
estâncias e cidades de segurança nacional seriam nomeados.
O AI-4, de 1966, revogou definitivamente a Constituição de 1946 e
proclamou outra. O AI-5, de 1968, suspendeu as garantias constitucionais
da Constituição que tinham acabado de promulgar. Despachos da
presidência de República passaram a valer mais que leis. Congresso,
Assembleias Legislativas e Câmeras dos Vereadores foram fechados por um
ano. O Presidente podia decretar intervenção de Estados e Municípios.
Estavam proibidas atividades e manifestação de natureza política e
suspenso o direito de habeas corpus.
Finalmente, parte da sociedade civil que apoiou o Golpe percebeu que
militares não sabiam negociar nem ser contrariados. Não têm intimidades
com jogo político. Na essência, não praticam a democracia: obedecem sem
questionar um comando, uma hierarquia imposta de cima para baixo.
Foram acusados de comunistas os subversivos dom Elder Câmara, dom Pedro
Casaldáliga e dom Paulo Evaristo Arns, que se encontrara em 1964 em Três
Rios com tropas do general Olimpio Mourão Filho, deflagrador do Golpe,
para oferecer assistência religiosa.
Nos tempos da ditadura, não se discutiam os grandes investimentos.
Militares construíram uma usina nuclear com tecnologia obsoleta, numa
região de difícil evacuação, e duas estradas paralelas ao Rio Amazonas, a
Transamazônica e a Perimetral Norte, que foram tomadas pela floresta
anos depois, devastando nações indígenas. Estatizaram companhias
telefônicas e de energia. Colaboraram para o desmantelamento da malha
ferroviária brasileira.
Editores de livros, como Ênio da Silveira, foram presos. Jornalistas,
como toda a redação do Pasquim, entre eles, Paulo Francis, foram presos.
Até um escritor no início simpático ao Golpe, como Rubem Fonseca, foi
censurado. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos e expulsos do
Brasil. Raul Seixas foi convidado a se retirar, depois de ironizar o
regime com “sou a mosca que pousou na sua sopa”. Chico Buarque se
exilou. Teatros foram depredados, atores espancados. Parte da classe
teatral, como Zé Celso e Boal, foi embora. Glauber Rocha também se
mandou.
O contrabando e o jogo do bicho se associaram a agentes da repressão e
se fortaleceram. O crime organizado nasceu. A promiscuidade entre
polícia e bandido, tema do filme Lúcio Flávio (Babenco), se consolidou
na ditadura, que promoveu e anistiou depois torturadores. O Comando
Vermelho surgiu num presídio da ditadura.
Ao terminar em março de 1985, a ditadura deixou uma inflação que virou
hiper (a acumulada de 1984 foi de 223,90%), uma moeda desvalorizada (um
dólar valia 4.160 cruzeiros), uma dívida externa que nos levou à
moratória (FMI suspendeu em fevereiro de 1985 o crédito ao Brasil, que
não cumpria as metas depois de sete tentativas). Outra herança:
desmantelamento do ensino público.
O Brasil é governado há 20 anos por três subversivos acusados de
comunistas pela ditadura: FHC, ex-professor da USP cassado e exilado,
Lula, sindicalista cassado e preso, e Dilma, terrorista acusada de
liderar uma organização clandestina que praticava a luta armada. Líderes
do antigo PCB fundaram o PPS. Todos estão na legalidade e participam da
vida democrática, como o PCB e seu racha, o PCdoB, parte da base
aliada.
O Brasil talvez tenha sido vítima de uma das maiores farsas da História: nunca correu o risco de virar comunista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário