Paulo Moreira Leite
A eventualidade presidencial de Joaquim coloca uma questão complicada em suas iniciativas em relação à ação penal 470
Vamos ler o item IX do artigo 41 da Lei de Execuções Penais. Diz assim:
Art. 41 - Constituem direitos do preso:
IX - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;
O Houaiss ensina: sensacionalismo consiste no “uso e efeito de
assuntos sensacionais, capazes de causar impacto, de chocar a opinião
pública, sem que haja qualquer preocupação com a veracidade”
Vamos entender o contexto de 1984, quando a lei foi aprovada, e o
contexto de hoje. Os presos da ação penal 470 atravessaram o país em
jatos da Polícia Federal para ir a Brasília sem que ninguém saiba a
razão, já que a maioria deixou clara a vontade de cumprir pena em região
próxima de amigos e familiares e todos têm o direito de serem atendidos
nesse quesito.
Alguém vai negar que os presos foram vítimas de uma iniciativa
sensacionalista, capaz de “causar impacto, de chocar a opinião pública”?
Uma das comentaristas presentes ao Jô Soares, outro dia, chegou a dizer
que a verdadeira proclamação da República não ocorreu em 15 de novembro
de 1889, mas na sexta-feira passada. Isso é "impacto" e choque, vamos
combinar.
Em 1984, quando a lei foi aprovada, a dignidade dos cidadãos
encarcerados era ameaçada pelos meios de comunicação. O jornalismo
policial tinha uma importância que não possui hoje. Repórteres e
fotógrafos disputavam histórias escabrosas, que permitiam retratar
criminosos como personagens animalescos, monstros morais com valores
incompatíveis com uma sociedade civilizada. Era uma forma conveniente de
fechar os olhos para a tortura e às execuções cometidas em ambiente de
absoluta impunidade. Policiais eram glorificados e tratados como ídolos
populares, embora agissem de forma criminosa – inclusive Sérgio Fleury,
do DOPS paulista, onde aliava-se a traficantes de drogas e combatia
militantes que se opunham ao regime militar.
Em 2013, a situação é outra, evidentemente.
Vivemos no mundo do marketing e dos factoides, essas iniciativas das
próprias autoridades que procuram “causar impacto” e se antecipam aos
meios de comunicação com a finalidade de usá-los em seu proveito.
O voo dos prisioneiros foi isso, uma sensação. Boa ou ruim, depende do paladar de cada um.
Mas parece claro que ocorreram vários desvios antes, durante e depois da viagem.
Se não havia uma razão clara para que os prisioneiros fossem embarcados,
apareceram outras questões no momento da chegada. Os prisioneiros não
estavam devidamente acompanhados pela carta de sentença, documento que
estipula as condições para o cumprimento de sua pena. Em condições
normais, prisioneiros nessa situação costumam ser simplesmente
devolvidos à polícia, que só deve retornar quando tiver a papelada
devida. Imagine o vexame.
Para não estragar a cena da proclamação da República, todos foram aceitos.
Mas havia outra dificuldade. Havia prisioneiros com direito ao regime
semiaberto – mas não havia vagas para que fossem instalados nessa
condição. O correto, nesta circunstancia, é liberar o preso e, na pior
das hipóteses, amarrar um chip eletrônico em seu tornozelo. Cidadãos
notórios – como boa parte dos prisioneiros – até seriam dispensados do
chip, já que poderiam ser facilmente reconhecidos e localizados em
qualquer ponto do país.
O resumo lógico da epopeia é o seguinte: os prisioneiros não deveriam
ter ido a Brasília. Se chegassem lá, não poderiam ter sido aceitos no
presídio por falta de documentos apropriados. Se mesmo assim tivessem
entrado, os mais importantes, os troféus – José Dirceu, Genoino, Delúbio
– precisavam ser colocados na rua.
Seria sensacional? Talvez. Mas foi sensacionalista, quando se leva em contra um aspecto grave do episódio.
Não foram tomadas medidas adequadas, em relação aos prisioneiros, que
poderiam ter estragado a cena. Essas medidas corretivas poderiam, com
certeza, colocar em questão a “veracidade” do espetáculo, como diz o
artigo 41 da Lei de Execuções.
Há outra questão oculta que acompanhou o episódio.
Com uma oposição que até agora não encontrou um rosto capaz de traduzir
um descontentamento difuso que as pesquisas indicam existir no país, o
nome de Joaquim Barbosa é uma possibilidade óbvia para 2014. Ele tem
negado qualquer intenção neste sentido e conheço muitos políticos bem
colocados que duvidam inteiramente da hipótese
De qualquer modo, o presidente do STF não precisa ter pressa. A lei lhe
dá o direito – exclusivo de juízes – de permanecer no cargo até abril
antes de desincompatibilizar-se. Só neste prazo precisará filiar-se a um
partido político.
Para animar a oposição a pensar na possibilidade da candidatura Joaquim,
as prisões ocorreram na mesma semana em que as pesquisas informam que
Dilma levaria no primeiro turno se as eleições fossem hoje.
A eventualidade presidencial de Joaquim coloca uma questão complicada em
suas iniciativas em relação à ação penal 470. Está na cara que ele só
deixou a condição de ilustre desconhecido para ser aplaudido nas ruas
por causa dela. Alguém lembra de outro caso que tenha julgado no
Supremo? De alguma denúncia que apresentou quando integrava o Ministério
Público?
E aí uma coisa alimenta a outra. Toda iniciativa de Joaquim Barbosa,
como presidente do STF, pode lhe render frutos eleitorais óbvios, caso
resolva entrar em campanha para se tornar presidente do país.
Pergunto se é muita má vontade enxergar aí um caso estranho de conflito de interesses.
Acho aceitável que um governador, um presidente, um senador, utilize de
seu cargo para conseguir votos. Afinal, estamos falando de cidadãos que
têm um partido político, falam em nome de um projeto e defendem uma
parcela da sociedade. Foram eleitos com essa perspectiva.
Seria absurdo pedir a um governador ou presidente que fosse isento.
Pelo contrário: mesmo procurando defender o conjunto da nação e
comprometido com a Constituição, todos têm o direito e até o dever de
priorizar seus eleitores, que tem interesses que podem ser até opostos
aos de outras fatias da sociedade. Este é o jogo democrático.
A atuação de um juiz, ainda mais presidente do STF, tem outra natureza,
outro caráter. Em certa medida, são opostos àquilo que se espera de um
candidato. Devem refletir a isenção das togas negras e dos olhos
vendados.
Seu compromisso é com a aplicação da lei e o respeito pelas provas dos autos.
Mas, no caso do Brasil e de uma eventual candidatura de Joaquim Barbosa em 2014, suas decisões irão servir a busca por votos.
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