“Nunca houve mulher como Gilda”, era o slogan do famoso clássico noir
de Charles Vidor. Quando Rita Hayworth aparece numa boate de Buenos
Aires, bêbada, alegre e cheia de más intenções, cantando Put the blame on Mame, entende-se facilmente o sentido da frase.
Sem saber como abordar a patacoada final do STF, num julgamento com
tantos furos, decidi me aproximar do assunto usando a letra da canção
de Allan Roberts e Doris Fisher, feita especialmente para a personagem
de Rita, a “ultimate femme fatale” Gilda.
Até porque pode-se dizer que “nunca houve um julgamento como o mensalão”.
Put the blame on Mame (Ponha a culpa em Mame) cita as grandes
catástrofes naturais dos EUA. Num jogo irônico, o narrador diz que a
verdadeira culpada de tudo é Mame, uma mulher tão atraente que seus
beijos causam incêndios espetaculares, suas recusas produzem terríveis
nevascas, e quando ela dança ocorrem assassinatos e terremotos.
Me parece ser justamente o que a mídia tentou fazer nesse julgamento.
Procurou-se, a todo custo, transformá-lo no bode expiatório de séculos
de corrupção e desequilíbrio judicial. Assim como na canção, porém,
criou-se uma caricatura.
E a montanha pariu um rato. Depois de sete anos de campanha pesadíssima para condenar os “mensaleiros”, qual foi o resultado?
O resultado foi: condenou-se os “mensaleiros”.
Mas não houve nenhuma comoção nacional.
Ao contrário, viu-se um espetáculo deprimente, com o presidente do STF,
Joaquim Barbosa, protagonizando a mais vergonhosa performance da
história da instituição: xingando o plenário, xingando seus pares,
xingando o procurador-geral.
A tentativa de colar no PT a pecha de um partido corrupto falhou desde
que se descobriu o mensalão tucano, anos atrás, e a eclosão de
sucessivos escândalos partidários de lá para cá, envolvendo a oposição.
Tivemos o mensalão do Distrito Federal, liderado pelo próprio
governador, José Roberto Arruda (DEM). Mais tarde, um dos principais
verdugos do PT, inclusive durante os inquéritos parlamentares que
tratavam do mensalão, o senador Demóstenes Torres (DEM), se viu
desmascarado como um bandido aliado ao bando de Carlinhos Cachoeira.
Descobriu-se que a Veja participava dos esquemas de Cachoeira. E com elas, todos os grandes jornais.
Descobriu-se que a Globo cometeu uma fraude milionária contra a Receita Federal.
Veio o escândalo do trensalão tucano paulista. E agora o Brasil
assiste, estarrecido, o desbaratamento de uma quadrilha de fiscais da
prefeitura de São Paulo, responsável por desvios superiores a meio
bilhão de reais.
O grande incêndio de Chicago de 1871, o terremoto que arrasou São
Francisco em 1906, e a tempestade de neve em Nova York de 1988, foram
causados por Dirceu e mensaleiros?
Sim, diz a mídia, dançando sensualmente no meio do salão: a verdade é dura. Mame é culpada de tudo.
As pessoas assistem, fascinadas, a performance de Gilda. Batem palmas.
Só que uma quantidade crescente de pessoas sabe que nada disso faz
sentido.
Porque não foram reunidas provas suficientes. Por isso a insistência num suposto simbolismo da condenação e prisão dos réus.
“Pela primeira vez, o STF está condenando ricos e poderosos”, repete a
Globo, em seus editoriais, numa inacreditável manifestação de cinismo.
O resultado da Ação Penal 470 enseja uma interpretação oposta daquela
ventilada pela mídia. Na verdade, testemunhamos, mais uma vez, que
somente os amigos dos poderosos da mídia conseguem se salvar da prisão.
Aqueles que a mídia considera adversários são perseguidos até os
confins do mundo. E, no Brasil, os principais adversários da mídia são
políticos ligados ao trabalhismo. Vargas, Jango, Lula e Dirceu. Os
barões da mídia brasileira só aceitam o esquerdista inofensivo, purista,
cheio de idealismo acadêmico. O revolucionário cuja maior vitória
política é publicar um artigo na Ilustríssima.
No entanto, a ação midiática para botar na prisão os “mensaleiros”, na minha opinião, saiu cara demais.
Foi uma vitória de Pirro. Sim, porque o objetivo da mídia era derrotar
Roma, ou seja, derrubar o PT, mas terá que se contentar com derrubar
somente algumas casas no monte Quirinal: a prisão de Dirceu, Genoíno,
João Paulo Cunha e Pizzolato. O PT cresceu, ganhou a principal
prefeitura de São Paulo e pode ganhar, em 2014, mais quatro anos de
governo federal.
Num último ato de arbítrio, e mais uma vez rompendo com a
jurisprudência, Joaquim Barbosa conseguiu impor a prisão antes da hora
aos réus.
Mas a que custo? A imprensa brasileira produziu uma ficção para si
mesma e para um grupo descrescente de leitores. As suas verdades não
estão se expandindo. Em 2005, quando o escândalo explodiu, a mídia ainda
exercia uma hegemonia completa.
Não mais.
Se você navegar pela internet e monitorar as redes sociais, verá que há
um debate aceso no país. Não há mais um consenso submisso às teses dos
barões da imprensa.
Por exemplo, hoje o Globo traz uma notinha positivamente babaca que, na
minha opinião, apenas envergonha o jornalismo brasileiro.
Reparem como o jornal tentou cercar Pizzolato e se deu mal. Encontrou
uma vizinha que o elogiou e, não satisfeita, ainda mostrou ao repórter a
revista Retrato do Brasil, que traz uma série de reportagens que
demolem o julgamento do mensalão. Mas o Globo, com o mau caratismo
habitual, não se aprofunda. Apenas desqualifica levianamente a revista
mostrada pela vizinha: “a publicação diz que o processo do mensalão é
uma criação da mídia e que a decisão de o BB não ter contrato para
operar o Visanet é de 2001.”
A distorção da Globo é tosca, tanto que não dá nem para entender. O
título é ambíguo e equivocado: “Pizzolato e sua versão do golpe na
Visanet”. A versão não é de Pizzolato, e sim da revista Retrato do
Brasil. Para Pizzolato, não é uma versão, é o fundamento de sua defesa,
com base em documentos que, aliás, o Globo sequer menciona.
Esse papel ridículo da imprensa tende a se aprofundar cada vez mais,
porque uma mentira puxa a outra. Por quanto tempo a Globo acha que
conseguirá bloquear a informação de que o dinheiro da Visanet, por cujo
desvio se acusa Pizzolato, acabou, na verdade, nas burras da própria
Globo?
Os advogados dos sócios da DNA reuniram documentos que provam que a
campanha da Visanet foi regularmente realizada, com distribuição dos
recursos para veículos de mídia, conforme se pode ver na tabela
seguinte.
Principais grupos de mídia que receberam os recursos da campanha do BB/Visanet no ano de 2004:
O Grupo Globo recebeu, portanto, R$ 5,5 milhões da Visanet, na campanha
publicitária feita pela DNA em 2004, usando o mesmo dinheiro que,
segundo Barbosa, teria sido desviado.
Por quanto tempo a Globo acha que vai esconder que o regulamento do
Fundo Visanet deixa bem claro que aqueles recursos eram privados? Eles
não saíam da caixa do BB, nem do Tesouro. Tanto que o BB não abriu
nenhum procedimento para recuperar o dinheiro perdido. Porque ele
entende que não o perdeu, pois a campanha de publicidade foi realizada,
incluindo aí o patrocínio a um congressos de juízes do qual
participaram os ministros do STF.
Relatórios da auditoria interna do BB, em diversos momentos, sempre
reafirmaram que os recursos do Fundo Visanet não pertencem ao BB e,
portanto, não constituem dinheiro público.
O problema do julgamento da Ação Penal 470 é que se trata de uma
denúncia inepta, que a pretexto de condenar supostos crimes de caixa 2
do Partido dos Trabalhdores e legendas aliadas, atropelou os autos e o
devido processo legal. Não estou dizendo que os réus são inocentes.
Ninguém é inocente. Há setores da esquerda que vêem no mensalão a
oportunidade de um acerto de contas com as divergências ideológicas e
política para com o PT e, sobretudo, com a teses de José Dirceu.
Isso não é democrático, nem honesto, nem ético. Acerto de contas
político tem de ser feito pelo debate político, e não através de
condenações sem provas.
A mesma coisa vale para a teoria, também aventada em setores da
esquerda, de que o PT está pagando pelo caixa 2 que fez na campanha de
2002. Ora, essas pessoas não acompanharam o julgamento da Ação Penal
470? A tese da procuradoria, aceita acriticamente pelo STF, é justamente
de que não houve um crime de caixa 2, e sim um grande esquema para
corromper deputados e aprovar leis. Só que não se comprovou a compra de
votos, e a teoria de que houve desvio dos recursos da Visanet é
totalmente equivocada. O dinheiro da Visanet não foi desviado, e não era
público.
É tudo tão bizarro, que a acusação sequer se preocupou em sanar uma
contradição absoluta. Se os recursos do Visanet foram inteiramente
desviados, conforme afirma Joaquim Barbosa, como é que a DNA recebeu
Bônus de Volume? O BV é um prêmio que os veículos de mídia pagam às
agências de publicidade, e corresponde a um percentual sobre os recursos
que os veículos recebem. Ou seja, se os veículos de mídia deram BV à
DNA Propaganda é porque eles receberam, devidamente, recursos de uma
campanha de publicidade.
Por onde se olha a acusação, se vê furos e mais furos. Nada se encaixa.
Se o Brasil quisesse investigar os problemas de caixa 2, tanto na
campanha de 2002 como em outras, teria que esquecer essa história
ridícula da Visanet, absolver Pizzolato, e sondar as finanças das
empresas controladas por Daniel Dantas, que teria sido o grande homem do
caixa 2 das campanhas de 2002, tanto para o PSDB quanto para o PT. As
grandes empresas costumam agir como a CIA na América Central dos anos
50: apoiavam o governo, de um lado, e os rebeldes, de outro. O que
ganhasse, estaria com ela.
É mais fácil, porém, botar a culpa do terremoto de São Francisco na
bela e imprevisível Mame. Afinal, não é ela, quer dizer, não é o PT, o
culpado de todas as atuais inseguranças vividas pelas empresas de mídia?
Só que a roda da fortuna gira. E a história desse erro judicial, num
primeiro momento tão trágica para os personagens diretamente envolvidos,
será tratada, no futuro, com a necessária mordacidade daqueles que
sentiram, mesmo que apenas indiretamente, a violência de seu arbítrio.
Miguel do Rosário
No O Cafezinho
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