Começo a ficar preocupado com determinados argumentos de quem pretende
cassar o mandato dos deputados sem cumprir o ritual Constitucional —
pelo menos.
Parece aquele truque do sujeito esperto demais que quer se fazer de bobo para ver se os outros não percebem aonde quer chegar…
O truque é dizer que a Lei Maior é confusa. E como tem acontecido
recentemente, chamamos o Supremo para resolver a confusão. Alguém tem
dúvida do resultado?
Pergunto para qualquer cidadão se há alguma ambiguidade nos parágrafos abaixo:
Diz o artigo 15 da Constituição:
Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
I – cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado;
II – incapacidade civil absoluta;
III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;
IV – recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII;
V – improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.
Já o artigo 55 da Constituição diz como é este processo:
Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
I – que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;
II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;
III – que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça
parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou
missão por esta autorizada;
IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;
VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
§ 1º – É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos
definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a
membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.
§ 2º – Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será
decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto
secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de
partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla
defesa.
§ 3º – Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada
pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de
qualquer de seus membros, ou de partido político representado no
Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
§ 4º A renúncia de parlamentar submetido a processo que vise ou possa
levar à perda do mandato, nos termos deste artigo, terá seus efeitos
suspensos até as deliberações finais de que tratam os §§ 2º e 3º.
(Incluído pela Emenda Constitucional de Revisão nº 6, de 1994)
Não sou advogado. Eu era editor de política em 1988, quando Ulysses
Guimarães liderou a Constituição cidadã. O país saía da ditadura militar
e escreveu uma Constituição para proteger os direitos do povo e a
soberania da nação. Um dos principais cuidados envolvia a preservação
de mandatos parlamentares pois, como nós sabemos, o regime militar
adorava fazer contas de chegar no Congresso.
Sempre que a oposição ameaçava ganhar espaço, descobria-se um caso de
“subversão” para cassar alguém. Ocorreram cassações individuais. Mas
ditadura gosta de listas. Começou no primeiro dia do golpe e não parou
mais. Grandes brasileiros, como Rubens Paiva, que seria sequestro,
torturado e morto, e até hoje seu corpo se encontra desaparecido, foi um
dos primeiros a perder o mandato. Vários outros vieram a seguir. Ou
porque pertenciam a organizações de esquerda, ou porque tinham feito um
pronunciamento mais duro ou simplesmente porque a ditadura queria
exercer o direito de cassar mandatos, fechar o Congresso por uns tempos e
assim por diante.
Traumatizados com o passado, nossos constituintes fizeram questão de
afirmar, no texto de 1988, o princípio geral de que a cassação de
mandatos não é uma coisa boa para o país. A ideia é que deveria ser
evitada, pois era um gesto de ditadura.
Note que a primeira frase do artigo 15 é dizer que “é vedada a cassação
de direitos políticos.” Ou seja: se der, não se cassa. Se não tiver
jeito, cassa. É este o “espírito” da lei, pode explicar um advogado.
Em princípio, cassar mandato é ruim.
Com essa ideia na cabeça, no artigo 55, eles explicaram quem pode
cassar, em quais circunstâncias. Não queriam bagunça. Não queriam
interferências externas neste assunto tão dolorosamente sério como a
soberania popular.
O nome do Executivo não aparece, claro. Nem o do STF que não é
mencionado nem como um lugar para alguém entrar com recurso. Quem cassa é
o Congresso. A Câmara, no caso de deputados. O senado, no caso dos
senadores. É preciso assegurar ampla defesa, e a votação deve ser
secreta, por maioria simples. A mensagem é: só os representantes do povo
podem cassar um representante do povo. Outro caso é o da Justiça
Eleitoral, encarregada de zelar pelas leis eleitorais. É coerente, mais
uma vez, com a vontade de proteger a vontade soberana da população. Mas
em todo caso nenhum réu foi condenado por crime eleitoral, certo?
Qual é a dúvida? A confusão? A ambiguidade?
Nenhuma. Há algo para ser “interpretado”?
Não acredito. Faça um teste: leia os dois artigos para um amigo 18 anos de idade e pergunte o que ela entendeu.
Pergunte se ele acha que os constituintes queriam que o Supremo também pudesse cassar parlamentares.
Mas há confusão, ambiguidade, e dúvida em outro ponto. É no respeito às
normas da democracia. No respeito à Constituição. Essa discussão só
ocorre porque algumas pessoas estão tendo dúvidas perigosas a respeito
disso.
Algumas pessoas acham que não fica bem, por exemplo, um sujeito
condenado preservar seus direitos políticos. E se ele tiver de ir para a
prisão, como fica?
Não “fica bem”? Então se saiu de uma ditadura para que alguns
consultores do bom gosto em política nos expliquem que algumas coisas
não “ficam bem” e outras “ficam bem.” Não é a uma questão de boas
maneiras. Os legisladores — que elaboram as leis — deixaram claro quem
deveria fazer o quê. Não é etiqueta. É democracia. Este é o manual que
deve ser cumprido.
O que não fica bem é atropelar a Constituição. Isso é que fica mal. Muito mal.
Não é uma questão de gosto. É aquela vontade de não se submeter a um
ritual definido e pré-determinado, amparado em lei, que todos devem
respeitar. Muita gente está gostando de um Supremo que parece poder
fazer tudo. São aquelas pessoas que desde 2002 só conhecem derrota atrás
de derrota nas urnas. Em 2012, ficaram com um pouquinho mais de raiva
porque perderam o altar sagrado da prefeitura de São Paulo. O que deixa
o pessoal com mais medo quando pensa em 2014. Pensou perder de novo?
Puxa, esse povo ganhava desde a chegada de Pedro Alvares Cabral…Então,
com o Supremo, eles estão se animando. Não gostam de Geraldo Vandré mas
acreditam na volta do Cipó de Aroeira no lombo de quem mandô dá…
Vamos combinar. Até os paraguaios, quando quiseram livrar-se de um presidente eleito, fingiram um pouco mais.
Apresentaram a denúncia ao Congresso e deram duas horas para Fernando
Lugo se defender. A acusação era tão falsa como aqueles uísques da
década de 60 que todo pai de família de classe média importava de
Assunção mas pelo menos se fingiu respeitar um ritual. Este tipo de
respeito é necessário. Evita querelas internacionais, denuncias na OEA e
outras dores de cabeça que Washington não gosta de enfrentar a não ser
em casos extremos. Topa até reescrever a própria história, como fez em
Honduras, quando mudou de lado quando isso se mostrou conveniente. Não
deu muito certo em Assunção porque o Brasil reagiu com presteza, mas a
Casa Branca logo se alinhou com o “presidente”.
Aqui, nem isso se quer fazer. Possivelmente porque não há maioria, como
houve no Congresso paraguaio e também em Brasília, para cassar Dirceu
em 2005, com o argumento de que havia ferido o “decoro”. Não vamos
esquecer. Houve um acordo há sete anos, porque se esperava que a
cassação de Dirceu (e Roberto Jefferson) seria capaz de aliviar a crise.
Até o PT entrou no jogo, por baixo do pano.
Mas e agora, em 2012? A bancada governista, que tem maioria no Câmara e
no Senado, vai aceitar o domínio do fato assim, numa boa? Vai bater
palmas, sorrir amarelo e fingir que não está vendo nada, nem ouvindo
nada? Ninguém sabe.
Estamos falando de três deputados. Quem sabe quatro.
Não se iluda. A experiência ensina: é muito fácil saber como esses jogos começam – e ninguém consegue adivinhar como terminam.
Podem terminar mal. Ou muito mal. Apenas isso.
Ouvi Pedro Serrano, um dos melhores constitucionalistas de São Paulo e você pode ler a entrevista dele aqui.
Paulo Moreira LeiteNo Vamos combinar
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