Ricardo Melo
Yvonne para comentarista de TV
Yvonne para comentarista de TV
Há um mito na praça. O de que a liberdade de expressão existe e ponto.
Quem já trabalhou numa redação mainstream sabe que nunca é exatamente
assim. Coisas do sistema, e não pretendo me alongar sobre isso neste
momento. É o jogo jogado. A título de exercício apenas: você já viu
algum jornalista ter espaço em rede nacional para criticar o dono do
veículo que o contratou?
Claro que nem tudo é preto ou branco; a moda são tons de cinza. O uso do
conceito de livre manifestação varia com a época. Já beneficiou alhos e
bugalhos. No combate à ditadura, serviu de bandeira para os adversários
da violência desmedida contra opositores. Os generais, por sua vez,
também o invocaram ao obrigar guerrilheiros "arrependidos" a fazer
mea-culpa em público --sessões prévias de tortura à parte. Nestes dias
de calor escaldante, o preceito virou refúgio para quem prega a lei da
selva, o faroeste urbano, a justiça pelas próprias mãos.
Deixo claro desde o início. Como sempre defenderei o direito de qualquer
um lutar contra regimes odiosos, também admito, mesmo com o nariz
devidamente protegido, o direito de representantes das trevas declararem
apoio ao ódio como regime. A escolha de um ou outro sistema de
convivência social depende de cada cidadão. Prefiro o primeiro tipo.
A questão não é vetar o direito de expressão, mas avaliar o que foi
expresso --e isto também é, ou deveria ser, uma prerrogativa básica.
Valendo-me dela, digo com tranquilidade: repulsa é pouco para descrever o
sentimento despertado pelo comentário que justifica, por
"compreensível", a barbárie praticada contra um menor no Rio. Sim,
valores mudam com o tempo. No Velho Oeste os acusados de roubar cavalos
acabavam sumariamente na forca. Durante a escravidão, indivíduos eram
açoitados até a morte; já a Ku Klux Klan americana incinerava negros
como se fossem moscas. Mas era bom assim?
Muitos não se conformam em perceber que a civilização avançou, não
tanto, é verdade, mas alguma coisa pelo menos. Rejeitam submeter o
impulso animal ao racional e, pior: ainda chamam isto de pureza de
princípios. É natural, como hipótese, que o parente de uma vítima tenha,
no primeiro momento, desejos de vingança. Eis o instinto animal. Mas o
que nos separa tanto de tubarões quanto de hienas é o lado da razão.
Isto tem seu contraponto, presídios lotados por exemplo. Então que tal
eliminar de antemão qualquer suspeito ou acusado? Precedentes há de
sobra: a história oferece inúmeras modalidades de "soluções finais".
Felizmente na outra ponta existe gente como Yvonne Bezerra de Mello. Foi
ela quem acudiu o jovem acorrentado por uma chusma de transviados. O
que Yvonne levou em troca mostrou-se quase tão chocante quanto o fato.
Seu depoimento sobre as ameaças que passou a ouvir: "Por rede social,
email, telefone, tudo. Fui xingada de tudo o que é nome, me acusaram de
educar bandido. É um choque saber que vivemos em uma sociedade nazista,
fascista".
Yvonne conhece o riscado. Ganhou fama internacional ao denunciar a
infamante chacina da Candelária, também no Rio. Relembrando: numa noite
de julho de 1993, ocupantes de carros com placas encobertas pararam em
frente à Igreja da Candelária e fuzilaram crianças e jovens que dormiam
na área. Oito morreram: seis menores e dois maiores. Policiais cometeram
o crime, soube-se depois.
Certamente o fantasma daqueles dias voltou a rondar a cabeça de Yvonne.
Tudo porque ela não achou "compreensível" que um jovem tivesse sido
espancado, linchado e preso a um poste com uma trava de bicicleta.
Pergunta incômoda: por que apesar de tanta liberdade de expressão Yvonne não tem espaço como comentarista de TV? Fica a ideia.
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