segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A BUNDA



  
Qual o mistério do encanto da bunda? Uma conjugação de abundantes e harmônicos traços curvilíneos, relevo altiplano, textura sedosa e volume macio definem essa organização arquitetônica primorosa que resulta na obra prima maior da natureza, concedida por Deus ao homem. Ou melhor dito, à mulher, porquanto é exclusivamente a feminina que detém os primorosos atributos. A vitória definitiva da curva sobre a reta. Da dualidade sobre a ‘monotonia’. A negação do caos e da entropia. O ápice da criação divina. Afirmação inequívoca da existência de Deus e do Diabo, aqui pactuados e configurados numa mesma concepção temporal. Mistura de pureza com profanação. De carnalidade com divindade.

Ainda que desprovida de intenções malévolas, a perversidade faz parte de sua natureza, pelo mero ato de existir, independente de mostrar-se aos olhos. Quando revelada, provoca pensamentos libidinosos pelo que é. Quando oculta, provoca-os pelo que poderia ser.

Tal como a Lua, em que parece inspirar-se, inclusive na forma, a bunda permanece inatingível, mesmo após ser explorada e violada por mãos impuras. É feita para ser admirada e desejada . Jamais possuída.

Fisiologicamente, poderia ser considerada prolongamento tanto dos membros como do tronco. Harmoniza-se anatomicamente com ambos. Elemento indissociável da perfeita composição corporal que se molda, num acabamento irretocável. O detalhe que se sobrepõe com tamanha imponência à totalidade que a subjuga. Os demais componentes passam a ser adereços a adornar-lhe, em face da suntuosidade desbundante de sua presença imperiosa, perturbadora, retumbante.

O movimento das pernas ao andar provoca-lhe reflexivamente um balançar hipnotizante que faz do simples ato de caminhar uma sinfonia épica vertida pela alma carioca em loas pela bossa nova e em carniça pelo funk. O fato é que, de um ou de outro jeito, todos se rendem seduzidos ante o gingado que ela despretensiosa ou maliciosamente proporciona.

Paradoxalmente, essa obra prima da criação presta-se ao degradante ofício de abrigar o canal de saída do material rejeitado pelo organismo. É a porta do fundo do corpo. A garagem, a saída de serviço, onde têm lugar as inconfessáveis atividades submundanas. Algo que, dada a espécie de função fisiológica que exerce, deveria ser a parte mais repugnante do corpo, é contraditoriamente sua porção mais exuberante. Como Deus fez essa obra prima e lhe deu uma atribuição tão ignóbil? Mistérios da obra divina que, como limitados seres mortais, não nos é permitido compreender, parecendo  revestido de incomensurável despropósito.

A bunda, ainda que com predicados tão soberbos, presta-se com resignação a tais papéis aviltantes. Não protesta, não reclama, não chia. Nem mesmo peida.

 Tem a humildade própria das grandes eminências. Aceita sua sina, indiferente aos olhos e aos julgamentos de todos, conservando seus encantos ocultos no íntimo das calcinhas que a guardam.

Segue ela seu caminho, rebolando pelas estradas. Semeando fantasias, arrebatando corações, afogando gansos...


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Do e-mail enviado por Sérgio Sayeg [sygsergio@gmail.com] 
Sobre o autor:
Sérgio Sayeg nasceu em São Paulo, no Paraíso, bairro onde viveu toda a sua infância e adolescência. É descendente de libaneses. Completou todos seus estudos no Colégio Dante Alighieri. Posteriormente formou-se em Economia pela USP, onde também se pós-graduou. Foi pesquisador, professor universitário e trabalhou no serviço público estadual e municipal. Estreante no campo literário, o autor, na autoapresentação do livro, fornece pistas sobre o que será encontrado nas páginas seguintes: “Provindo dos áridos campos da Economia (...), pode parecer, em princípio, desvario inconsequente ter-se aventurado por caminho tão diametralmente oposto como o de lidar com verbo ao invés de verbas. Enganosa similitude morfológica que oculta atividades que guardam improváveis afinidades (...). Enlevado é, desde adolescente, pela arte de expressar-se através da escrita, sendo dotado de um estilo peculiar que poderíamos tipificar, na falta de adjetivação mais apropriada, de ‘miscelânico’’, já que congrega livremente elementos díspares provindos das mais estapafúrdias influências como a literatura surrealista de Franz Kafka, o cinema carismático de Frank Capra e a música dodecafônica de Frank Zappa”.  

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