Do Folha diferenciada - 2/10/2014
Presidente da Odebrecht diz que capitalismo brasileiro foi quem mais ganhou no porto cubano de Mariel
O alvo prioritário de nosso conservadorismo tem uma nova estrela –a médica cubana que, de olho nas delícias de Miami, decidiu abandonar o programa Mais Médicos. É um direito dela tentar escolher o país onde pretende viver.
Mas é claro que nossos dinossauros da Guerra Fria pretendem fazer desse gesto uma demonstração do fracasso do programa. Bobagem.
Quem tem direito a dizer se o programa é bom ou ruim é a população interessada. E, ao que parece, os casos de sucesso são esclarecedores. O número de prefeitos que aderem ao programa não para de crescer.
A campanha contra os médicos cubanos faz parte de um exercício de anti comunismo primário que nasceu há meio século e, agora, tenta ganhar novo fôlego. Essa doutrina fazia parte do golpe que derrubou o governo constitucional de João Goulart. Antes, como agora, conservadores brasileiros querem convencer o país que todo esforço de aproximação com o regime de Fidel e Raul Castro só traz prejuízos ao país, atrapalha nosso desenvolvimento e diminui o emprego.
Eram chamados de “entreguistas” mas, anos de ditadura e de censura acabaram retirando a expressão de nosso vocabulário político.
Jango deixou de ser um interlocutor válido, em Washington, quando deixou claro que não iria dar o voto brasileiro para isolar Cuba no hemisfério.
Foi neste momento que John Kennedy mudou de lado, passando a sabotar o governo brasileiro até que fosse derrubado. Outros pontos eram importantes. Mas o inaceitável mesmo era a decisão de manter relações com Cuba e contrariar a polícia externa da Casa Branca. Dois bons historiadores, Jorge Ferreira e Moniz Bandeira, tem relatos claros e bem informados a esse respeito.
Cinquenta anos se passaram, o Muro de Berlim caiu, a União Soviética foi dissolvida mas até hoje o coro contra Cuba persiste.
Fala-se em defesa da democracia, sem um fiapo de sinceridade quando se recorda a postura assumida diante de golpes terríveis e prolongados que vieram depois, como o de Augusto Pinochet, ou patéticos mas ainda assim condenáveis, como aventuras recentes, no Paraguai, em Honduras.
Mas é um movimento tão distante das possibilidades e necessidades do mundo real do mundo real, na segunda década do século XXI, que não enxerga sequer as vantagens que uma aproximação com o regime cubano pode trazer ao país – até do ponto de um ponto de vista capitalista.
Foi assim que assistimos a um coro ridículo e desinformado contra a inauguração do porto de Mariel, em Cuba. Não vou repetir os argumentos que foram divulgados nos últimos dias.
Chamo a atenção para um artigo que saiu hoje, na Folha. Seu autor é Marcelo Odebrecht, presidente do grupo Odebrecht, responsável pela construção do Porto de Mariel.
Partindo das críticas ao BNDES, apontado como a ponta de lança de uma política de exportação de capitais destinada a manter um “regime de servidão” em Cuba, o empresário explica que o banco financiou centenas de empresas brasileiras. Sua avaliação está resumida numa frase: “Se o porto será de grande importância para o socialismo cubano, foi o capitalismo brasileiro que mais ganhou até agora.”
Alguns exemplos:
a) O BNDES não investiu em Mariel. O BNDES financiou as exportações de cerca de 400 empresas brasileiras, lideradas pela Odebrecht, no valor equivalente a 70% do projeto.
b) o financiamento à exportação gera empregos no Brasil, porque não há remessa de dinheiro para o exterior. Os recursos são desembolsados aqui, em reais, para a aquisição de 85% dos bens e serviços produzidos e prestados por trabalhadores brasileiros (os demais 15% são pagos à vista pelo importador).
c) em 2012, o BNDES destinou cerca de US$ 7 bilhões para apoiar o comércio exterior e US$ 173 bilhões para o mercado interno.
d) para quem gosta de associar Cuba a pagamentos atrasados, o empresário lembra que a ocorrência de calotes não está relacionada a alinhamentos ideológicos: os maiores "defaults" recentemente enfrentados pelo Brasil vieram dos Estados Unidos e do Chile.”
Estes dados ajudam a entender que o mundo mudou – ainda que os nostálgicos da Guerra Fria possam dar a impressão de que não entenderam a mudança. É uma impressão falsa, porém. Praticam um entreguismo de novo tipo.
Eles analisaram, entenderam e fizeram uma opção diplomática, conhecida nos meios como ” integração subordinada. “ Nas palavras de um estudioso, consiste em reconhecer que “todos os países são iguais mas alguns são mais iguais do que os outros.”
Estão alinhados com a diplomacia do Eixo do Mal, criada no governo de George W Bush para justificar a derrubada de regimes que, de natureza muito diversas, refletindo opções políticas diferentes, possuíam um ponto de vista comum – a recusa em submeter-se a vontade de Washington e o esforço, ora bem sucedido, muitas vezes apenas quixotesco, de preservar um valor chamado soberania.
Nesse alinhamento, nossos conservadores são capazes de juntar-se à direita americana mais truculenta nas críticas à determinadas iniciativas de Barack Obama.
É essa visão, que enxerga na submissão uma forma legítima mas nem sempre confessável de atuação diplomática, que está em debate. Alimenta as campanhas a favor de uma política agressiva em relação a Cuba e os demais governos que não são do agrado de Washington mas, muitas vezes, podem representar aproximações valiosas para a diplomacia brasileira, inclusive do ponto de vista econômico.
Paulo Moreira Leite. Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa"
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