Dilma e Hitler
Marcelo Carneiro da Cunha
Estimados leitores, não é todo dia que a gente tem o privilégio de ver
uma mente como a do deputado Anthony Garotinho em funcionamento, talvez
devido à baixa frequência com que esse fenômeno ocorre, quem sabe.
Agora, por exemplo, nosso bravo deputado, vem dizer em alto e mau tom
que nossa presidente pode ser comparada a Hitler. Dilma Rousseff?
Hitler?
Segundo o deputado, assim como Dilma é popular, Hitler também o foi. O
que eu imagino, a favor do deputado, é que com os eventuais neurônios
atordoados por citações bíblicas nas vinte horas por dia que ele se
dedica aos seus afazeres de evangélico, ele não faça ideia do que esteja
dizendo. E, com a intenção de contribuir para com a formação, digamos,
intelectual, do deputado, vamos tentar explicar a ele por que, se se
pode comparar Hitler com alguma coisa, isso jamais seria possível ser
feito com relação à nossa presidente.
Por exemplo, deputado, Dilma é uma mulher humanista, democrata, e culta.
Ela seguramente é uma pessoa de convicções, mas soube trocar as que
talvez tivesse aos 19 anos por teses mais de acordo com as ideias
libertárias que foram se impondo ao longo do século 20. Hitler nunca
mudou, nunca evoluiu, nunca deixou de acreditar no que acreditava, por
mais insano e insensato que fosse - no que se parece sabe com quem,
deputado?
A popularidade de Dilma e de Hitler vêm de origens absolutamente
distintas e inversas. A origem da popularidade de Hitler não pode ser
comparada com a de Dilma, mas pode sim ser comparada sabe com qual tipo
de popularidade, estimado deputado Garotinho? Ora, com a sua, vejam só!
Hitler se tornou popular por oferecer promessas irrealizáveis a pessoas
desesperadas. Ele também se tornou popular por propor a repressão a
minorias indefesas. Não eram apenas os judeus, estimado deputado, mas os
ciganos, por exemplo. Por quê? Quem entende a mente de um Hitler, caro
deputado? Eu, por exemplo, não entendo. Assim como não entendo o ódio
dele pelos homossexuais. Aliás, isso o senhor deve entender muito melhor
do que eu, não é mesmo? Isso o faz popular junto aos públicos tomados
pela ignorância e pelas trevas, casualmente o mesmo público que Hitler
adorava. Viu que coincidência?
Hitler era um populista e prometia simplicidades. Soa familiar?
O senhor se diz cristão. Ora, veja que maravilha! Hitler também! Mas, e
aqui vai a opinião singela deste colunista que definitivamente não é
cristão: nem Hitler, nem o senhor me parecem minimamente parecidos com o
que Cristo, o próprio, dizia que esperava dos cristãos. Ele esperava
amor ao próximo, caridade, tolerância para com os diferentes, a busca
incessante por justiça.
Quem lutou por justiça, foi presa e barbaramente torturada foi a Dilma,
não foi? Que nunca usou isso para nada, nem a seu favor nem contra
ninguém. Me parece muito digno, e talvez por isso ela seja popular, quem
sabe?
Já o senhor, na relação com a justiça, pelo menos a federal, foi
condenado por formação de quadrilha, não foi? Quem se aproxima mais dos
ideais cristãos?
Cristo apoiaria gente que se torna popular promovendo a intolerância e a
perseguição a inocentes? Pois eu, no meu não-cristianismo, acho que
não.
Quem se tornou e busca a popularidade por esses métodos, caro deputado? A
Dilma é que não. Ela nos impressiona talvez pelo jeito sério com que
conduz a sua vida e a sua presidência. Todos temos nossos medos em
relação às intenções dos políticos, mas creio que acreditamos na
sinceridade dela, mesmo os que não concordam com as suas teses. Ela pode
não ser de muitas palavras, mas lembra como ela beijou a bandeira do
Brasil durante a sua posse? Nem eu, nem ninguém esperávamos por aquele
gesto, talvez porque nós, brasileiros, e com bons motivos, suspeitamos
de demonstrações exageradas de patriotismo. Mas ela estava nos dizendo a
que tinha vindo e o que fazia ali, o que a movia. E enquanto não
acreditamos em um só fio de cabelo seu, nobre deputado, acreditamos
nela. Por isso ela é popular junto a todos, e o senhor, bom...
Já Hitler se tornou popular por ser um monstro e cativar os monstros que
vivem nas sociedades. Ele foi popular por explicar que todos os
problemas eram causados pelos judeus, pelos ciganos, pelos eslavos,
pelos homossexuais. Tão simples! O senhor nos diz que os problemas são
causados pela falta de valores cristãos na sociedade, que basta eliminar
os ímpios e pfffui, estaremos bem. Claro que, diferentemente dele, o
senhor não quer eliminar ninguém pra valer, basta que eles sumam da vida
pública e social e pronto, a paz reinará.
O nazismo era horrível porque se acreditava resultado de uma vontade
praticamente divina, à qual todos deveriam se render, caro deputado.
Nisso, o nazismo encontra similares sabe onde? Nas teocracias, onde o
senhor se sentiria tão à vontade, desde que fosse a sua. Olhem o Irã, a
Arábia Saudita, o Paquistão. Igual a eles. Uma teocracia evangélica,
deusnoslivre, seria algo muito parecido e feliz, não? Não foi no seu
governo que se propôs que o estado passasse a pagar pela recuperação de
gays?
Hitler era um dinossauro, carnívoro. Não foi durante o seu governo do
pobre estado do Rio de Janeiro que quiseram ensinar nas escolas públicas
o estúpido criacionismo, no qual o senhor deve acreditar? Que diz que
dinossauros, nós, todos vivemos juntos, livres e felizes há menos de 6
mil anos, mesmo que isso seja tão maluco que ninguém sério possa levar a
sério?
Nas escolas do Hitler se ensinava que os judeus não eram gente como a
gente. O senhor se opõe a que as nossas escolas ensinem que todos somos
igualmente gente. Qual a diferença? Explique aí.
Senhor deputado Garotinho, foi um prazer vê-lo tão bem disposto e
fazendo tais declarações que mostram, mais do que tudo, que o senhor
fica muito melhor quando fala somente do que entende. O que talvez
demonstre, se não mais muita coisa, o quanto ficar calado lhe faz bem.
Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o
argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros
importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos
"Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de
escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela
Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus
romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe", publicados pela editora
Projeto.
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