Não
parece apenas uma leve desconfiança de que a partir do momento em que
nos propomos a ver TV, seja para o que for, não se mostre difícil que os
competentes comentaristas nos alertem, a todo o instante, de que somos
imbecis. Ou cegos, ou surdos.
A
transmissão, via TV, dos carnavais dos sambódromos, tanto do Rio quanto
de São Paulo, não são, na realidade, o que se vê nos respectivos locais
– isso todos sabemos. Richard Wagner (1813-1883), que era um exímio
leitor de partituras, e que dispensava as audições físicas das obras,
conta que só foi entender alguns aspectos da nona sinfonia de Beethoven,
quando a escutou ao vivo, em Paris. A música, o teatro ou os
espetáculos das escolas de samba, são eventos para além das telas da TV;
por maiores que sejam os aparelhos, elas nunca dimensionam o vento, a
presença viva das pessoas e, no que as escolas de samba têm de melhor,
fundamentalmente para os ouvidos – não há equipamentos de som que
ressoem como nos sambódromos. Dá-se, então, que pensemos que determinada
escola será a mais premiada. Mas a “São Clemente” acabará perdendo para
a “Vila Isabel” ou, em São Paulo, não será a “Vai Vai” a campeã – mas
outra qualquer. O problema, o grande problema parece ser os comentários
das transmissões.
Eles quase
sempre discorrem a favor da telinha da TV. Dizem que o espetáculo está
bonito – mas ninguém está achando feio (mesmo porque o que a transmissão
demonstra, dispensa as opiniões em contrário). Quanto às baterias das
escolas, não há a menor chance de que se as escute por três ou quatro
minutos, sem a interferência de alguém. Haverá sempre a conversa de um
dos “tradutores”, sejam das imagens, sejam dos sons. Eles dirão que há
um repique interessante no acompanhamento do samba-enredo que não nos é
dado escutar, já que o mais importante é que o trabalho dos repórteres
repitam o óbvio: que há, de fato, o tal repique, que alguns versos são
bonitos e, por fim, mas não finalmente, que as cores da escola se
compõem muito bem. E daí que fica sempre a suposição do daltonismo dos
espectadores: o azul é preciso se dizer que é azul. E que os belos tons
de roxo, vejam senhores telespectadores, são belos tons de roxos.
A
Fundação Gulbenkian, de Lisboa, compõe-se de muitos equipamentos, mas
principalmente de um dos “pequenos” grandes museus da Europa. São
incontáveis as obras expostas, desde o período da dominação moura, na
Península, aos impressionistas franceses. Em seu catálogo, porém, muitos
dos comentários sobre as obras de arte, não são quaisquer adendos – mas
autênticas descrições para cegos: talvez importe informar que o verde
“de Veronese” está justamente num quadro de Veronese – pintor veneziano
seiscentista – e que sua cor está realmente entre o verde e o azul – mas
haverá algo mais expressivo do que o quadro, além da descrição do
quadro?
Miguel de Cervantes no
século XVII, já tinha consciência dos truísmos e pleonasmos que
enxameavam os compêndios, não apenas de sua época. Talvez, para prevenir
os ilustres leitores para o que os esperava, muitos autores faziam uma
espécie de “abstract” do que se seguiria Eram redundâncias tão grandes,
que Cervantes resolveu imitá-los. Só que, no seu “Dom Quixote”, não se
pode conter o riso: a cada capítulo o autor faz um resumo que, não raro,
ressalta o óbvio clamoroso que se torna mais engraçado, justamente por
isso. Assim, ao tentar reter a curiosidade do leitor Cervantes alerta:
“Onde se lê o que se segue”. É a relevância da bobagem, mas de que,
modernamente, se inferem muitas outras questões.
Por
exemplo: para os telespectadores refestelados em suas cadeiras, talvez
não ocorram os níveis de redundâncias a que estão subjugados. Dizer que a
bateria faz uma pausa longa, certamente não acrescenta à própria o que
todos estão escutando – mas esse é justamente o comentário que mais
ocorre. E não para chamar a atenção, demonstrando o fato – mas para que
os espectadores vejam e escutem muito menos do que está, por si mesmo,
já restringido pela tela da TV.
Talvez,
contudo, essa questão –a da obviedade - não seja tão desimportante ou
dispensável. A idéia de contraponto – de algo que contradiz uma imagem
ou um som – para alcançar uma outra dimensão, pode ser um recurso cênico
ou dramático em torno de um discurso que não se propõe à contradição;
ou que o dispense pela simploriedade. No cinema mudo, nas cópias
sonorizadas que nos chegam, o olhar de Carlitos se enternece com a
música que reflete os olhos da jovem na melancolia ou na correspondência
do seu olhar, também emocionado. Mas a cena dramática ou francamente
trágica, pode ser acompanhada de um música saltitante e alegre.
Numa
bienal de muito tempo atrás, havia uma instalação que raiava sadismo
com muito maior contundência do que o comum delas: era uma sucessão de
filmes, nunca divulgados para o grande público, de cenas verdadeiras de
acidentes aéreos. Ensaiava o mais macabro possível: todos sabiam que no
imenso telão que ocupava uma parede de mais de três metros de altura, as
cenas dos aviões se despedaçando – em alguns casos, divisavam-se os
corpos sendo cuspidos fora das aeronaves – que tudo aquilo era
verdadeiro, nada era de mentirinha. O pior, porém, era certamente o que o
autor da instalação mais queria – provocar o mais puro pânico nos
espectadores. Tudo muito consentâneo, digamos, com as suas autênticas
intenções terroristas. O que tornava a cena ainda mais assustadora,
horripilante mesmo, não eram vozes ou gritos – mas uma valsa muito
amena, até bonita. Ela palpitava em três por quatro o paradoxo dos
milhares de mortos – pois os desastres se sucediam uns depois dos outros
– uma centena deles, talvez. Sempre ao som de uma valsa. E todos, com
aviões de passageiros enormes, desses que carregam dezenas, senão
centenas de pessoas.
Não há muito
o que concluir. No “Maior Espetáculo da Terra”, como dizem os
locutores, a repetirem redundantemente, que os desfiles das escolas de
samba, são realmente representações grandiosas, fica-se, apesar de tudo,
ou por isso mesmo, num mar de dúvidas. Vivemos um mundo de
redundâncias: todos os que gostam de futebol, sabemos que o gol foi
belíssimo, que o chute de fora da área encobriu o goleiro numa
parabólica perfeita, quase milagrosa. No entanto, precisamos ouvir do
locutor que o gol, dado desde fora da área, foi belíssimo? E que
encobriu o goleiro, sendo que foi exatamente isso que as várias câmeras
registraram?
Não parece apenas
uma leve desconfiança de que a partir do momento em que nos propomos a
ver TV, seja para o que for, não se mostre difícil que os competentes
comentaristas nos alertem, a todo o instante, de que somos imbecis. Ou
cegos, ou surdos.
Enio Squeff é artista plástico e jornalista.No Carta Maior
Nenhum comentário:
Postar um comentário