Alavanca do capitalismo, a televisão é hoje o principal inimigo da livre concorrência
O
desfile das escolas de samba pode até ser o maior espetáculo da terra.
Mas a televisão brasileira ainda não aprendeu a transmiti-lo.
Há
uma forte razão que obriga todas as escolas a terem um samba-enredo e
que seus integrantes sejam estimulados a cantá-lo e sambar com ele. Mas
quem assiste ao desfile pela TV, logo percebe que o áudio é um mero
detalhe.
A transmissão não se
ocupa dele. Os sons parecem todos iguais e se não fosse por dois minutos
de legenda, nem sequer saberíamos qual a música que cada escola
escolheu para guiá-la.
Os enredos
são mesmo complexos, falam de muitas coisas diferentes ao mesmo tempo.
Mas o carnavalesco nem precisaria se preocupar em armar uma ordem mais
ou menos lógica para tentar explicá-lo.
A
transmissão da TV é randômica, vai e vem para frente e para trás
freneticamente, alternando alas, destaques e carros e impossibilita ao
espectador saber quem está na frente, quem está atrás.
A
bateria é o pulmão de qualquer escola de samba, e quem quer que já a
tenha ouvido ao vivo tem exata noção de sua importância e da emoção que
provoca. Mas o som que ela produz é quase inaudível nas transmissões.
Os instrumentos dos ritmistas mais parecem fantasias. Como todo o desfile, aliás, muito mais plástico que acústico.
Bateria da São Clemente na Sapucaí
(foto: Dhavid Normando/ Futura Press)
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A
TV Globo continua tratando os espectadores pela doutrina Willian
Bonner, segundo a qual quem está do outro lado da tela são milhões de
Homer Simpson.
É preciso explicar
cada uma das cenas como se estivéssemos assistindo a uma inusitada
cerimônia aborígene ou a transmissão do parlamento sueco.
Mas
os comentários que ouvimos na longa transmissão forjam, mais ainda que
os enredos incompreensíveis, aquilo que o compositor e humorista
Stanislaw Ponte Preta denominava "samba do crioulo doido".
O
falso suicídio de Wladimir Herzog foi um tema muito "desenvolvido", diz
o narrador. Antônio Conselheiro, líder da revolta de Canudos, vira
mártir da independência brasileira. E por aí vão os comentários que nos
impedem de ouvir as músicas.
Samba e enredo, cultura e alegria, engenho e arte, tudo sai de cena quando o assunto é encontrar celebridades na avenida.
Como
madrinhas de bateria, destaques de alegorias ou diretores ad-hoc, toda
escola tem os seus globais, que serão fartamente iluminados pelas
câmaras da casa durante todo o desfile e entrevistados em plena ação,
mesmo que para isso alas inteiras devam sucumbir na sombra.
Descobre-se,
ao final, entre tantas vinhetas, salas especiais e recursos visuais
repetidos ad nauseam, que a vedete do Carnaval é sempre a própria
emissora.
E como se não bastasse
trucidar o desfile, a Globo ainda estimula seus milhões de
telespectadores a opinar pelo telefone justamente sobre aquilo que não
viram.
Como escolher entre os
vários sambas-enredo que a emissora impediu que conhecêssemos? Como dar
nota às baterias cujos sons nos foram sonegados? Não, a nota não tem
nenhum valor, dizem eles insistentemente; apenas preço: trinta e poucos
centavos mais os impostos etc.
Mudar de canal, como se sabe, é impossível.
Formadora
constante de monopólios, a TV, alavanca do capitalismo, está se
tornando, paradoxalmente, a maior inimiga da livre concorrência.
Para corridas, jogos ou eventos musicais, não existe mais opção nesse liberalismo totalitário.
Vai
chegar um dia que alguma emissora, possivelmente a própria Globo, terá
exclusividade na cobertura de uma passeata, na apuração da eleição ou na
posse de um presidente.
Para as
escolas, o dinheiro engrossa o caixa não apenas pelos direitos de
transmissão, mas cada vez mais pelo uso do merchandising.
Produtos,
locais ou pessoas vão se tornando enredos à medida em que são bons de
retorno financeiro - é a tal força da grana que ergue e destrói as
coisas belas.
Assistimos à escola
bancada pelo iogurte, com uma ala de lactobacilos, ou à que rende
homenagem à mulher, alojando rimas da esponja de limpeza patrocinadora
nas estrofes do samba.
Se o mundo
é um moinho, como já ensinava Cartola, e vai mesmo reduzir nossas
ilusões a pó, talvez devêssemos é nos dar por satisfeitos, enquanto o
Carnaval não se transforma num enorme reality show.
No Sem Juízo, por Marcelo Semer
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