Copiado, na íntegra, do e-mail enviado pela Amiga e Prof. LEDA RIBEIRO, da cidade de Carmo/RJ.
Obrigado Leda
Abraços,
Saraiva
"Leia sem nenhum favor até o fim. É imperdível e verdadeiro em um só texto. Trata-se do primeiro capítulo do livro de Nadejda Marques, Born subversive, que divulgo em primeira mão em português, traduzido por ela própria. Nadejda é filha única de Jarbas Marques, morto sob torturas no Recife em 1973, no que se convencionou chamar de O Massacre da Chácara São Bento. Pra mim, Nadejda é um milagre da vida. "
NASCI SUBVERSIVA *
Nadejda Marques*
Eu não sou de falar muito. Em festas e outros eventos sociais meu esposo geralmente auxilia as minhas conversas e instrui os ouvintes: “Você tem que torcer o braço dela para que ela fale mais.” Essa expressão comum me dá um arrepio. Você já parou para pensar como é possível que a tortura seja tão banalizada na nossa cultura? Você acha que eu estou exagerando? Que é paranoia minha? Minha vida social vai muito bem, obrigada. E, além do mais, é um talento atiçar a curiosidade dos ouvintes, naturalmente, para que eles queiram saber mais. Honestamente, no meu caso não é nenhuma das duas situações. Não é um sinal de timidez ou talento. Penso que seja um mecanismo comum, um mecanismo de defesa ou mesmo sobrevivência. Se a cada dia nós morremos um pouco, somos todos sobreviventes. Sobrevivemos a doenças, ao crime, à violência, à dor, à solidão e à política.
Eu sou uma sobrevivente política. Antes de completar três anos, escapei de dois golpes militares. Viajei do Brasil ao Chile passando pela Argentina, e depois, como refugiada política, fui à Suécia, à ex-União Soviética e a Cuba. Falar agora para mim não é problema, mas não é de causar surpresa que eu somente tenha falado as minhas primeiras palavras já aos quase cinco anos. Assim me contaram. Eu falei depois de uma queda. Falei depois de cair acidentalmente na banheira do hotel Presidente em Havana, em Cuba, onde meus pais e eu éramos refugiados. Depois de tanta correria, viagens, países diferentes, pessoas diferentes, uma queda. Uma catarse e finalm ente minhas primeiras frases.
Eu gosto de contar essa estória porque hoje em dia os pais se preocupam com essas coisas. Quando é que um filho vai andar? Quando é que um filho vai falar? Meus pais me contaram que eu falei pela primeira vez em frases completas, e não confundia os dois principais idiomas ao meu redor, o português e o espanhol, idiomas muito próximos devido a sua raiz comum no Latim. Minha mãe, pernambucana, meu pai (na verdade, meu segundo pai -- sei que vai parecer confuso mas não gosto da palavra padrasto), mineiro, falavam comigo em português. Os demais companheiros, companheiras, camaradas, tios, tias, amigos em Cuba falavam espanhol. Eu também gosto dessa estória da banheira porque aparentemente as minhas primeiras palavras teriam sido para me defender. Foi alguma coisa sobre ter mais cuidado. Na vida é importante saber se defender, defender sua integridade e a sua dignidade. Aparentemente após o acidente na banheira, eu finalmente entendi e falei alto e claro: Cuidado!
Eu aprendi a falar, mas também a ficar calada, ficar em silêncio. Aprendi a não oferecer informações quando não fosse solicitada ou absolutamente necessário, com ênfase no absolutamente necessário. Aprendi isso também com outros sobreviventes da ditadura, da violência, do exílio, da clandestinidade, da vida. À nossa volta eles treinaram a mim e aos meus irmãos. Eles nos contavam estórias sobre um passado não muito distante. Nos contaram como escaparam da ditadura militar no Brasil, no Chile. Nos contaram como sofreram, como viveram. Em meio a conversas sobre coisas triviais, nos ensinavam algumas táticas de sobrevivência. No início era algo q ue parecia divertido, um jogo, uma charada, mas depois entendemos que no extremo caía em uma loucura. “Sempre chegue cedo a encontros... Não se esqueça de mapear onde você se encontra... Avalie possíveis rotas de saída.... Nunca dê as costas à porta”...
Esses ensinamentos ficam com a gente como um tique nervoso. Até hoje, por exemplo, gosto de tomar caminhos diferentes para evitar ser seguida. Até hoje?! Seguida?! Por quem? É como se olhar sobre o ombro não fosse suficiente, e sem querer mudo o caminho, o roteiro, para evitar ser seguida volto até o meu ponto de partida. Será que aprendi isso com eles mesmo? Ou foi num livro de infância? De qualquer forma, aprendemos a importância de ser paciente e de ter calma em circunstâncias de estresse. Aprendemos que é importante estar informado, avaliar as possibilidades para tomar as decisões corretas. Com o passar dos anos, aprendemos que muitos ao nosso redor tentavam segurar informações sob tortura. Sabemos que a tortura e outros abusos violentos eram a norma e não apenas um risco. Era preciso saber e imaginar previamente que tipo de informação seria “vazada” quando a dor fosse intolerável e a mente sucumbisse ao sofrimento do corpo. Alguns preferiam a morte como escapatória irremediável, mas eram “salvos” apenas para sofrer novas torturas horas depois ou no dia seguinte. Aprendemos muitas coisas mas não aprendemos tudo. Em parte porque não conseguimos acabar com a tortura. Em parte porque o mundo atual não mudou muito e nunca se sabe se um dia táticas para sobreviver a circunstâncias extremas serão necessárias. Além disso, por que revelariam tudo? Se eu entendi direito, revelar tudo, tudinho, mesmo que seja aos seus entes queridos, viola uma das principais regras de sobrevivência: para a sua segurança e a segurança dos outros, algumas coisas devem ser só suas, devem pertencer somente a você. Ningué m sai por ai revelando o seu ponto fraco. Em mãos erradas, essa informação facilmente poderia destruir qualquer tentativa de superar a dor física para salvar a mente e a alma.
Durante a ditadura militar no Brasil, a tortura foi o principal método de investigação. Eram aplicadas diferentes modalidades e técnicas de tortura física e psicológica. Por exemplo: para infligir maior sofrimento em suas vítimas, os torturadores da ditadura adiantavam os relógios para enganá-las e forçá-las a falar de eventos que aparentemente já teriam acontecido, quando de fato ainda estavam por ocorrer. Aqueles que caíam e eram presos sabiam que tinham que segurar o pesado tempo suficiente para que os companheiros lá fora pudessem mudar os planos, para que se dessem conta de que um companheiro ou companheira caíra e que estava sob custódia d os agentes do Estado. Se a vítima pudesse heroicamente segurar o batente por um bom tempo, poderia evitar que outros também caíssem. Mas para isso era preciso saber, quase que literalmente, que horas eram. Essas armadilhas psicológicas se aproveitam da humilhação e a perda quase completa de todos os sentidos que a vítima de tortura sofre, incapaz de medir seu sofrimento em minutos, horas e às vezes dias. As vítimas de tortura não são capazes de medir o tempo porque, em situação de privação de sono, normalmente mantidas em celas escuras, vendados ou em ambientes com pouca iluminação, não conseguem se guiar pela luz do dia. A tortura não só fere o corpo e a mente, cria um estado paranoico onde o ser luta contra si mesmo. A tortura cria gerações de vítimas. Muitos de nós não fomos torturados, mas carregamos as cicatrizes de queimaduras e dos choques. Nossos pulmões estão cheios de água e os ouvidos derramam o zumbido do revólver.
Embora eu tenha decidido contar a você leitor como minha mãe e eu sobrevivemos dia após dia, este livro não é um manual. Não fala de técnicas. Fala de experiências, de memórias. As referências que faço a algumas práticas e outros mecanismos de sobrevivência são apenas incidentais. Gosto de pensar que algum dia nós viveremos em um mundo em que técnicas de sobrevivência à violência não mais sejam necessárias. Gosto de pensar que minha filha viva para ver esse dia chegar. Isso não quer dizer que eu propositalmente queira esconder ou omitir coisas de você neste livro. Eu sei que escrevo muitas coisas que são apenas transmitidas em pequenos círculos, em conversas, e com base em interpre tações pessoais e emocionais. Algumas dessas coisas não me pertencem. Nunca pertenceram. Infelizmente, não posso oferecer respostas às questões que ainda confrontam gerações de brasileiros e de latino-americanos. Mas posso garantir que não tenho a menor intenção de mentir deliberadamente como muitos já fizeram.
A mentira é na verdade uma arma. É uma tática que os torturadores ainda usam. Mas a mentira dói. A mentira é coisa bastante dolorosa. Eu sei disso porque também sei mentir. Quando era criança, aprendi a mentir e talvez algumas mentiras tenham salvo minha vida. Aprendi a mentir porque acreditava que estava protegendo os que eu amo. Nas ruas, por medo de ser seguida, meus pais me ensinaram que às vezes precisava evitar amigos e parentes. Um cumprimento descuidado, ou um sorriso simpático poderia determinar o destino de outras pessoas. Muitas vezes eu ajudei a minha mãe a rasgar e queimar documentos, papéis e fotografias que achávamos que poderiam ser usad as contra nós. Quantas vezes nos mudamos por esse mundo afora. “Qual é o seu endereço?” “Quem quer saber?” Em pelo menos uma ocasião, minha mãe e eu mudamos nomes e usamos documentos falsos. Quando você vive na clandestinidade, você precisa criar a sua própria identidade com várias identidades. Mas a mentira tem seu preço e eu percebi isso bem cedo.
Talvez a mentira que mais tenha me marcado foi o dia em que menti sobre a minha mãe. Eu estava com treze anos e voltava da escola em um ônibus escolar. Era um pequeno luxo porque o serviço de transporte escolar era particular e não devia ser barato. O Brasil estava em transição democrática. O ano era 1985, um pouco mais de cinco anos após o nosso retorno ao Brasil de Cuba, via Panamá. Meu pai ajudara a fundar o sindicato dos profissionais de processamento de dados do estado de Minas Gerais, o primeiro do tipo no Brasil. Nos últimos anos do governo militar, os sindicatos tinham um papel importante na luta pela democratização do país. A criação de sindicatos era um progresso, um sinal de mudan ça. Logo o sindicato cresceria para outros estados do Brasil e essa atividade representava um risco, principalmente para os organizadores, os líderes, dentre eles o meu pai.
Devo voltar ao ônibus escolar. Algo estava errado e eu sentia isso. Eu sempre gostei de me sentar no meio do ônibus. É mais seguro, eu achava. Naquela época não havia cinto de segurança e eu me preocupava com minha segurança. Dias antes, meu pai tinha sido preso após uma das primeiras greves do Sindicato. Naquela época, nós não tínhamos telefone em casa e a notícia da prisão foi entregue pessoalmente por outros membros do sindicato. Eu sabia que alguma coisa estava errada quando eles vieram falar com minha mãe. Eu sabia que algo estava errado quando ela ficou acordada à noite na sala, sozinha. Será que vai acontecer tudo de novo? eu pensava. Como filha mais velha sempre senti que era minha responsabilidade cuidar da família e dos meus irm ãos. Eu queria ajudar. Eu queria fazer algo mas eu não sabia o quê ou como. Então eu estava no ônibus escolar quando um estranho subiu no ônibus. O homem sentou-se duas cadeiras de onde eu estava e não falou com nenhuma das crianças no ônibus. Eu acho que ele nem falou com o motorista. Talvez eles tenham trocado um cumprimento, ou um gesto com as mãos, com os olhos. O ônibus chegou na minha parada. Nós morávamos em um bairro de classe média baixa. Prédios de concreto sem muita graça ou arquitetura. Apenas caixas como essas que as crianças fazem para maquetes de escola. Nada de especial a não ser o fato de que todos os prédios se pareciam com suas linhas cinzas e retas. Se alguém não mora ali, se perde. Mas se você mora ali, conhece o lugar, sabe que as linhas retas não são tão retas. O concreto cinza tem de fato várias tonalidades. As janelas também. Algumas são coloridas com cortinas. Outras têm grades. Outras estão sempre fechadas e outras sem pre abertas. Em cada esquina há um perfume diferente. Pelo olfato você pode se orientar num lugar assim tranquilamente.
O homem olhou para fora do ônibus, se aproximou de mim, apontou para minha mãe em pé em frente ao nosso prédio e puxando conversa perguntou: “Aquela é a sua mãe?”
Lá estava ela, em pé, me esperando. Carrego essa imagem comigo. Não importa de onde eu voltasse, lá estava ela. Com um lenço na cabeça, uma moda antiga que ela usava quando jovem e quando estávamos em Cuba, mas naquele momento eu achava que era uma coisa que chamava a atenção. Meu irmão e minha irmã talvez estivessem na escola ainda. Minha mãe me esperava e provavelmente almoçaríamos juntas. Eu balancei a cabeça e franzi um pouco a boca. Calma eu respondi: “Não senhor. Não é. Não conheço essa mulher.” Desci do ônibus e apressei o passo na direção oposta para longe da minha mãe e do nosso apartamento. Eu corri e entrei em outro prédio. De longe fiquei olhando o ônibus descer a rua e desaparecer com o homem e minha mãe esperando. A mentira e o medo doendo dentro de mim e quando eu finalmente voltei para casa eu não podia parar de chorar. Era a culpa que sentia por fazê-la esperar tanto. Eu nunca contei a ela sobre o estranho. Eu não queria preocupá-la mais. Até hoje eu não sei por que aquele homem apareceu e se tinha alguma relação com a prisão do meu pai. O fato é que anos mais tarde soube que minha família estava sendo vigiada pelo serviço de inteligência do governo. Depois que voltamos de Cuba, alguém nos monitorava. Também aprendi uma lição dura. Já havia negado amigos e conhecidos antes no consulado, mas naquele dia era diferente. Entendi que negar aqueles que você ama, mesmo que por uma boa razão, é uma coisa dolorosa, um sofrimento que eu terei de carregar comigo.
Você já deve ter percebido que eu não conto somente a minha estória pessoal. Eu ofereço a você algumas estórias das muitas vidas que vivi. Ofereço estórias de vidas de pessoas que não mais podem contar suas estórias. Não é por acaso que sou eu quem conta essas estórias, pois muitos sacrificaram suas vidas em meu favor. Possivelmente, você e eu temos muitas coisas em comum e talvez você tenha vivido algumas dessas estórias. Talvez você tenha vivido essas estórias em outros países, em outros tempos e em outras línguas. Sei que você já conhece ou tem lembrança de algumas dessas estórias que muitas vezes são negadas pelos livros de história. Certamente alguns leitores não encontrarà £o nenhuma semelhança com suas vidas ou perspectivas. Talvez estejam anos-luz de distância, mas infelizmente penso que as vidas que conto nos cercam mais do que eu pensava. Além disso, há uma boa chance de que nossas experiências de vida se complementem. Talvez suas estórias, e sua vida sejam os capítulos que faltam nesta estória. É, talvez seja isso. Eu esperei quase cinco anos até poder falar e agora após trinta anos estou pronta para escrever. Espero que você esteja pronto para ler.
Por que escrever agora? Eu olho à minha volta procurando uma razão como a queda na banheira, a crise que me levou a falar. O que pode ter acelerado ou precipitado a minha vontade de escrever? A que forças eu respondo agora? Será porque Pinochet morreu? Recentemente vi encerrando um capítulo da história chilena e o fim do episódio da minha própria longa jornada que começou com minha viagem para Santiago do Chile pouco antes do golpe que Pinochet liderou no dia 11 de setembro de 1973. Pinochet, ditador. Morreu aos 92 anos no dia 10 de dezembro de 2006, de todos os dias do ano, logo no dia internacional dos Direitos Humanos. Foram tantas as tentativas para julgá-lo pelos crimes e atrocidades que com andou no Chile entre 1973 e 1990. Torci tanto para que Baltazar Garzón, o juiz espanhol, conseguisse extraditar Pinochet da Inglaterra e julgá-lo na Espanha (a vida é mesmo cheia de ironias). Teria sido maravilhoso se os chilenos tivessem conclusivamente responsabilizado Pinochet por todos os crimes que ele cometera. Mas não. Morreu assim sem responder pelas milhares de mortes e sofrimento imensurável que causou no Chile. Em vida se vanglorizou pelo controle pessoal que tinha, mas a própria morte não controlava.
Será que escrevo agora porque Fidel está doente? Fidel Castro para quem eu declarei diariamente durante cinco anos da minha infância “Hasta siempre compañero, seremos como el Ché!” está doente e sua condição é um mistério. Um mistério e uma incerteza como o futuro de Cuba. Após 47 anos no poder em Cuba, Fidel está doente e possivelmente com câncer. Publicamente com uma doença misteriosa que afetou seu intestino. Agora aos 80 anos, Castro ou Fidel como é chamado na América Latina, viveu mais do que muitos de companheiros por todo o mundo. Mistério e a pergunta que fica: será que a revolução cubana viverá mais do que Fidel? Que revolução ou qual das revoluções? Muitos dos meus a migos se preparam para visitar Cuba pela primeira vez. Eles são parte dos milhares de curiosos que se apressam a visitar Cuba antes que Fidel morra. Talvez o número de visitantes agora seja o maior desde que Cuba abriu suas fronteiras. Posso entender o interesse repentino, mas prefiro não perguntar se esse interesse é mais um ato egoístico ou um gesto de solidariedade. Eu ainda não voltei à Cuba e não sei se um dia voltarei. Tenho memórias de Cuba, memórias que eu valorizo e que quero preservar assim. A Cuba que vivi era diferente da realidade. Eu li e ouvi como as coisas se passaram e como mudaram desde quando eu estive lá. Me dói ouvir sobre os abusos de poder que caçam os dissidentes. Me dói a dureza do Período Especial, quando após a abertura da ilha um porteiro ganhava mais dinheiro do que médicos e professores porque dólares eram traficados por turistas. Me dói ver nas fotos as ruínas de Havana. Não. Essa definitivamente não é a Cuba onde vivi.
Talvez eu escreva porque minha mãe, nervosa e ainda tremendo, segura minha mão e em voz clara me contou que viu o cabo Anselmo, o homem que traiu seu primeiro marido, o meu primeiro Pai. O cabo Anselmo torturou e matou o meu pai e estava caminhando calmamente no calçadão de Copacabana em pleno Rio de Janeiro. Ele vive entre nós. Vez ou outra ele concorda em dar entrevistas e posar para a mídia local. Ele mente. Às vezes ele tenta posar como celebridade ou como um herói da ditadura. Às vezes se faz de vítima. Bem sabe ele que sempre que aparece é como uma ameaça velada, zombando dos que caíram. “Era ele”, minha mãe diz. “Eu o reconheci e ele caminhava normalmente como se nada tivesse acontecido.” A voz da minha mãe ainda ecoa na minha cabeça sempre que eu desvio o olhar.
Muitas coisas aconteceram e estão acontecendo, mas quanto mais o mundo muda, mais parece permanecer igual. Fome, pobreza, epidemias, guerra, tortura e armas nucleares eram os meus medos quando criança. Esses fantasmas essas ameaças ainda nos assombram hoje em dia. Claro que hoje surgiram novas ameaças como a mudança climática e o vírus do HIV, mas não surgiram do nada, nem sem aviso, nem sem uma parcela da nossa própria responsabilidade. Como é que uma criança dorme à noite? Como posso convencer a minha filha, aos seus seis anos, de que o mundo é um lugar seguro e que ela deveria dormir em sua cama após acordar no meio da noite? Não quero assustá-la. Eu quero protegê-la. “Mãe”, ela me chama andando meio dormindo, “eu vou me sentir melhor com você.” É difícil para mim resistir porque no fundo do meu coração eu sinto o mesmo. Eu quero alimentar o meu desejo de conforto e segurança. Eu protesto, meio acordada meio dormindo, mas ela sabe que eu não posso resistir ao seu pedido. Ela puxa as cobertas e se aconchega na cama de qualquer forma. Talvez seja isso, não escrevo em resposta a um único fator, mas reagindo a todas essas questões e mais uma, mais duas, mais três. Escrevo porque estou viva. Escrevo em resposta a uma das maravilhas da vida, o amor. Escrevo porque agora me sinto inspirada ao ver minha filha crescer. Ela quer saber tudo. Ela me pergunta sobre tudo e todos a todo momento. Algumas vezes suas perguntas são bastante práticas. “Por que eu preciso comer todo o brócolis?” Outras vezes suas perguntas são bastante filosóf icas e vibram dentro de mim por horas, às vezes dias. “Quem sou eu?... De onde somos? Por que moramos aqui? O que aconteceu com o meu avô? Por que você morou em Cuba? Por que nos mudamos para os Estados Unidos? Por quê? Por quê?”.
Com suas perguntas ela acorda a criança dentro de mim. Juntas ela me ajuda a pensar sobre o que a vida pode nos trazer, e repensar o passado, e responder o que podemos, e continuar a viver. De onde viemos? Do Brasil. Como chegamos aqui?
Como mãe, eu a amo e quero que cresça realizando o seu potencial e que viva feliz. Quero que seja livre das obrigações, culpas, medos e dor. Claro que eu tive minhas dúvidas ao escrever estas memórias, correndo o risco de ser mal compreendida e criticada, mas não haveria outra maneira de desabafar e encontrar um pouco de paz. Eu me reinventei em um novo lugar, em um novo país. Um lugar que eu adoto como minha casa. Adotei uma nova língua. Isso também teve um custo alto. Quando era criança eu fui criada para ser uma revolucionária. Eu fui doutrinada sobre as tentações diabólicas do capitalismo e de uma nação em particular: os Estados Unidos. Agora é neste lado da América que meu coração se sente sossegado e eu me encontro novamente. Tudo que passei me ajuda a reconhecer o que eu aprecio e ser responsável por meus próprios sentimentos. Aprendi a reconhecer os sinais do amor, da compaixão, da solidariedade. Eu me apaixonei por um cantinho na chamada Nova Inglaterra como muitos brasileiros que aqui vivem. E quando uma pessoa se apaixona tem a tendência de agir mais impulsivamente. Os apaixonados aceitam mais os riscos e se revelam. Os apaixonados são mais desafiadores. Apaixonadamente escrevo. Mas essa paixão que eu sinto é mais como um caso proibido. Lá no fundo eu ainda tenho dúvidas. Será que eu traí os princípios e os ideais que deveria defender? Os ideais pelos quais o meu pai morreu? Seria mais fácil resistir à tentação, mas o desejo é forte e eu não posso resistir. Mas sempre fica a dúvida e, por que não?, um a pontinha de culpa. Um culpa que também incita uma confissão em busca do perdão. Penitência? Não. Não penso que a penitência seja necessária. Eu paguei as minhas penas antecipadamente e se você não concordar, pouco importa, porque eu nasci assim. Nasci mulher, atéia, pobre. Nasci uma dissidente. Nasci subversiva.
* Primeiro capítulo do livro “Nasci Subversiva”, de Nadejda Marques, publicado em inglês e traduzido aqui por ela própria. Nadejda é filha única de Jarbas Marques, assassinado com Soledad Barrett, Pauline e mais 3 militantes, na chacina da Chácara São Bento.
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