sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A TRAGÉDIA HISTÓRICA

Copiado do Blog DE UM SEM-MÍDIA, do Amigo Carlos Augusto Dória, que está em Minhas Notícias.
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A TRAGÉDIA HISTÓRICA.

Por Mauro Santayana

René Depestre era meu companheiro na redação internacional da Rádio Havana, em 1965. Tendo vivido no Brasil, onde secretariara Jorge Amado, Depestre juntava vários companheiros para repetir, em crioulo, o estribilho de seu programa dirigido ao Haiti, contra a ditadura de François Duvalier: Divaliê, assassin!. Depestre é hoje um dos nomes mais altos da literatura francesa. Seu longo poema, Arc-en-ciel pour l’Occident chrétien, publicado em 1967, é duro libelo contra o racismo.

As circunstâncias do exílio, de sua estada no Brasil e de meu interesse pela literatura nos aproximaram. Depestre me revelou o grande escritor Jacques Roumain e seu Gouverneurs de la rosée (Governadores do orvalho). Ele e Depestre nasceram na elite haitiana, mas ambos lutaram em favor dos oprimidos. Roumain, um dos fundadores do Partido Comunista do Haiti, era filho de um presidente da República. Ainda menino, viu seu país invadido pelos marines, em 1915, a pretexto de “ação humanitária”. Essa ocupação, que nada resolveu, e manteve os privilegiados, terminou em 1934, quando Roosevelt retirou as tropas, mas continuou “protegendo” o país.

O território ocidental da Ilha de São Domingos, que passou ao domínio francês em 1697, por cessão da Espanha, se transformou em imenso canavial, com a importação de escravos. Durante o século 18, o Haiti (que significa, na língua nativa, terra montanhosa) viu extinta a sua população indígena. Em 1781, dos 556 mil habitantes, 500 mil eram negros, e o resto se formava de mulatos e brancos europeus. A terra, ocupada pela cana e culturas menos importantes, foi arrasada pela exploração colonial, predatória. No início de 1790, animado com a Revolução Francesa, o negro Vincent Ogé chefiou uma insurreição contra os franceses, mas foi capturado, torturado e executado. Toussaint-Louverture retomou o movimento no fim da década, e depois de muita luta venceu as tropas napoleônicas, em 1802. Os franceses, no entanto, traíram o compromisso e o aprisionaram. Louverture morreu em Paris. Finalmente, em 1804, os haitianos obtiveram sua independência, embora só de fachada. Foi o segundo país da América a se tornar formalmente autônomo: o primeiro foram os Estados Unidos.

Não há (provavelmente nem mesmo em algum lugar da África negra) população tão sofredora quanto a do Haiti, nem elite tão brutal. A desigualdade entre ricos e pobres não encontra paralelo no mundo. O país é o de menor PIB do Ocidente e de maior incidência de Aids; exibe a mais alta taxa de mortalidade infantil conhecida, e mais de 80% de sua população vivem na indigência quase absoluta. É um povo que tem todo o direito de exigir reparação histórica do mundo ocidental o que, nestas horas, enfrenta os danos do grande terremoto – o maior que atinge o país, desde o ocorrido em 1751 – há 259 anos. Ele foi arrancado de seu continente natal, a África, pelos colonizadores europeus; mantido na escravidão, até que se revoltou, mas a abolição foi uma mentira. Tem sido submetido, durante os dois últimos séculos, a uma opressão comandada ora por tiranos, ora por governantes dóceis, mas sempre sob controle externo.

“Somos sem sorte, é verdade. Somos miseráveis, é verdade. Você sabe por quê, irmão? Por causa de nossa ignorância. Mas ainda não conhecemos a força que somos. Algum dia, nós nos levantaremos de um lado a outro do país e convocaremos uma assembleia geral dos governadores do orvalho, sairemos todos da pobreza e plantaremos uma nova vida”, disse Roumain, em seu grande livro, em julho de 1944 – um mês antes de morrer, aos 37 anos.

Uma vida nova, que Depestre, em seu forte poema, quer libertada do colonialismo: “Ao diabo, seus pratos insípidos; ao diabo, o vinho branco; ao diabo, a maçã e a pera; ao diabo, todas suas mentiras”.

O terremoto e seus mortos, entre eles a doutora Zilda Arns e os demais brasileiros ali atingidos, podem servir para despertar os remorsos e a solidariedade do mundo – que não deve limitar-se à presença dos soldados da ONU, nem aos donativos de emergência.

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