Recentemente o Observatório da Imprensa publicou um artigo original da revista Veja que, surpreendentemente, parecia balanceado e até mesmo honesto. Coisa rara na história da revista, havia espaço para os dois lados da questão. Mas a "honestidade" para por aí. A revista não escondeu seu próprio lado ao chamar aqueles que defendem o protagonismo das redes sociais como "ciber-utópicos".
De qualquer forma, disse a Veja sobre os "ciber-utópicos":
A turma dos ciber-utópicos fez seu début em junho de 2009, depois que os iranianos saíram às ruas para protestar contra a eleição fraudulenta que reconduziu Mahmoud Ahmadinejad à presidência do país controlado pela ditadura dos aiatolás. O assunto foi o mais comentado do ano no Twitter, superando até a morte do astro pop Michael Jackson, o que levou os utópicos a cunhar a expressão "revolução do Twitter" e a apostar que essa ferramenta seria responsável por revoluções. O trecho de um editorial do respeitado jornal americano Washington Postcaptou o clima (otimista) da época: "O imediatismo dos tweets foi emocionante, com um fluxo de atualizações com fotos e vídeos que mostrou um retrato de crise no país. O que estamos vendo é a chama tremulante da liberdade." Um assessor do ex-presidente dos Estados Unidos George W. Bush chegou a sugerir que o Twitter fosse indicado ao prêmio Nobel da Paz pelo papel na crise. O governo de Teerã, contudo, não caiu: reprimiu os protestos e bloqueou serviços de internet. O episódio deixou a impressão de que a turma dos ciber-utópicos sobrecarregara de expectativas as asas do Twitter, fazendo do microblog a panaceia anti-ditaduras.
Já do lado dos "ciber-céticos", a Veja cita o onipresente "A Revolução não será tuitada" de Gladwell - que já desmontei em post anterior - e cita ainda o pesquisador iraniano Hamid Tehrani:
A resposta dos ciber-céticos veio na mesma intensidade, em sentido oposto. O primeiro contra-ataque foi comandado pelo pesquisador iraniano Hamid Tehrani, que tentou colocar os fatos ocorridos no Irã em sua real dimensão. "Houve uma sobrevalorização do Twitter. O país contou com menos de 1.000 usuários ativos. O maior volume de informações propagadas no microblog veio do Ocidente, de pessoas que não estavam no local. Quando alguém comentou que havia 700.000 pessoas protestando em frente a uma mesquita, descobriu-se que apenas cerca de 7.000 pessoas compareceram", escreveu.
Mas esperem, Hamid Tehrani como um ciber-cético?
Para quem não conhece o Hamid, ele é um autor do Global Voices Online e seria no mínimo engraçado que um ativista que usa as redes sociais como plataforma para divulgação da realidade iraniana fosse simplesmente um cético no que tange o uso destas em processos revolucionários e revoltas. Imagine então ser colocado ao lado de alguém como Gladwell!
Quando vi que ele teria sido supostamente entrevistado pela Veja enviei-lhe um e-mail questionando o fato e também questionando se ele havia realmente dito aquilo em qualquer outro lugar.
Conhecendo o histórico de manipulações da Veja, é sempre bom verificar todas as informações.
Eis o que ele me respondeu, em tradução livre:
Se havia sido entrevistado pela Veja ou por algum jornalista brasileiro - "Não, eu não dei nenhuma entrevista a um jornalista brasileiro"
Sobre a frase selecionada pela Veja - "A questão do Twitter: Eu escrevi um artigo para o Global Voices logo depois de estourar o movimento de protesto no Irã, 'Mito e realidade sobre o Twitter no Irã'" [o artigo é este, no link, em inglês]
Sobre a interpretação de suas palavras - "O que eu disse e o que sempre digo é que você não sabe realmente quantas pessoas usando o Twitter estão baseadas no Irã. Muitos dos que põem "Irã" em suas contas vivem fora do país e/ou conseguem sua informação de fontes de segunda mão, mais por ligarem para outras pessoas do que por estarem nas ruas.
Eu acho que a Al JAzeera certa vez mencionou que menos de 100 contas do Twitter estavam ativas em Teerã durante as manifestações de 2009.
Na verdade, o Twitter, ao contrário do YouTube e Facebook, não teve um papel significante no Irã. Nunca."
Tentando entender melhor esta última parte, mandei outro e-mail, questionando o papel do Facebook e do Youtube (e não só do Twitter) ao que o Hamid me respondeu -"Sim, o Facebook e o Youtube tiveram grande papel. O líder da oposição, Moussavi, tinha pelo menos 150 mil fãs no Facebook e os vídeos do Youtube estiveram muito presentes."
Apenas nesta simples e rápida troca de e-mails podemos ver que o Hamid, nem de longe, é um "ciber-cético". E tampouco deu qualquer declaração à revista Veja.
Ele tão somente criticou o ibope dado unicamente ao Twitter, mas defende a importância das mídias sociaiscomo um todo, em especial do Facebook e do YouTube. Apenas disso já notamos que a reportagem da Veja não é apenas tendenciosa, mas foi mal feita e as informações não foram devidamente apuradas. O e-mail do Hamid está disponível para quem quiser em sua página do Global Voices e não custava nada apurar antes de publicar.
No artigo que Hamid cita em seu e-mail, há de fato uma crítica ao poder do Twitter. Fala-se que ele leva a conclusões erradas muitas vezes, mas mesmo assim Hamid o considera uma forma interessante de espalhar notícias para o mundo, de dar visibilidade aos protestos. Ele ainda afirmou que:
Twitter and Facebook along with reformist websites such as Ghlamnews help communicate the decisions of reformist leaders and pass on the message.
Ou seja, que o Twitter, o Facebook e os sites reformistas ajudaram a comunicar as decisões dos líderes reformistas e ajudaram a passar a mensagem.
Para quem ainda pensa no Hamid como um "ciber-cético", repasso:
Most people tweet what they read on websites, and have also shared useful tips and informationto help Iranians circumvent internet filtering and censorship. In other words tweeting helps create an information pool.
"Muitas pessoas tuitaram o que leram em websites, e também compartilharam dicas úteis e informação para ajudar os iranianos a contornar a censura e filtragem da rede. Em outras palavras, tuitar ajuda a criar uma rede de informações."
Mas para quem pensa que acabaram os problemas, ledo engano.
O artigo do Hamid é de 4 de julho de 2009 e muito do que foi dito por ele foi retomado em uma entrevista - aí sim, ENTREVISTA - feita pelo The Guardian em 9 de junho de 2010.
Disse Tehrani ao The Guardian:
Such hyperbole reveals more about western fantasies for new media than the reality in Iran, argues Hamid Tehrani, the Persian editor of the blogging network Global Voices.
"The west was focused not on the Iranian people but on the role of western technology," he says. "Twitter was important in publicising what was happening, but its role was overemphasised."
Tehrani estimates that there were fewer than 1,000 active Twitter users in Iran at the time of the election. "Some people did provide updates from Tehran, but many didn't check out. When someone tweeted that there were 700,000 people demonstrating in front of a mosque, it turned out that only around 7,000 people showed up."
A matéria da Veja tem uma incrível semelhança com a do The Guardian, mas curiosamente não a cita. A veja não se dá ao trabalho de citar a fonte original, o Guardian, e nem o Global Voices - coisa que o Guardian fez.
E esta não é a primeira vez que a Veja cita um autor do Global Voices mas não cita o fato (ou a fonte).
Em 2009, informa Daniel Duende, ex-editor do Global Voices em Português e atual colaborador do projeto - a Veja copiou letra sobre letra artigo sobre a Palestina - "Blogueiros em Gaza relatam o terror" - sem citar a fonte e, mesmo depois de imensa pressão da blogosfera, não se retrataram ou retiraram o artigo do ar.
Segundo a Veja, o jornalista (sic) André Pontes foi o autor da reportagem... E não o Global Voices!
Daniel Duende, com propriedade, exclamou na época:
Todos sabemos a qualidade do trabalho jornalístico (!!??) da Veja piora a cada dia. Não é supresa que eles plagiem sem citar fontes, roubem material, mintam, se façam de desentendidos. Mas não é por isso que devemos parar de reclamar ou de nos indignar frente aos absurdos cometidos por esta revista semanal sem compromisso algum com o jornalismo, e muito menos com a ética.
Continua assustadoramente atual. Ética e jornalismo, para a Veja, são coisas que não combinam.
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