Caso Isabella: o “fato-ônibus”
Como a “grande mídia” volta a dar destaque ao “caso Isabella”, devido ao julgamento de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá (acusados do crime e já condenados pela “grande mídia” há dois anos), minha “resposta” é o texto abaixo, originalmente publicado em 11 de abril de 2008.
Semestre passado, cursei na faculdade um seminário temático cujo tema era a mídia ao longo da História. A cadeira encerrou-se com um trabalho de análise sobre o filme “O Quarto Poder” – do consagrado diretor Constantin Costa-Gavras – feito com base em uma obra fundamental para se entender a televisão e sua lógica de funcionamento: “Sobre a Televisão”, de Pierre Bourdieu.
O filme de Costa-Gavras mostra como um simples incidente pode tornar-se um espetáculo midiático. No caso, o ex-segurança de um museu da cidade de Madeline, Sam Baily (John Travolta) busca recuperar seu emprego, mas levara uma espingarda para ameaçar a diretora do museu e acidentalmente atirou, acertando um segurança. Max Brackett (Dustin Hoffman) fazia uma reportagem sem importância no museu, e no momento do tiro estava no banheiro, quando percebeu a chance de retomar à sua antiga fama, cobrindo o incidente em uma posição privilegiada: junto ao acontecimento. Havia notícias mais importantes a serem dadas – como um escândalo de corrupção – mas todas as emissoras passaram a priorizar “o drama do museu”: a concorrência, tão exaltada pelos defensores do “livre mercado”, serviu para homogeneizar as informações, e não para oferecer alternativas aos telespectadores. E além disso, o tom da cobertura televisiva influenciava muito a “opinião pública” sobre o fato: no princípio do caso, com Brackett apresentando Baily às câmeras como um desempregado que tinha uma família para sustentar, as pessoas viam o ex-segurança com simpatia; quando o foco passara a ser as crianças que ele havia tomado como reféns (e vale lembrar que foi Brackett que orientou Baily a transformar o incidente em um seqüestro, com exigências à polícia para libertar os reféns), a “opinião pública” mudou de lado. E a mudança do teor na cobertura se dava em todas as emissoras, não apenas em uma.
Tal drama é o que Bourdieu chama de “fato-ônibus”. São as notícias de variedades (onde se encaixam os dramas), que “interessam a todos” sem terem maiores conseqüências – em “O Quarto Poder” elas seriam maiores do que o esperado, mas o que a mídia buscava era o índice de audiência, nada a mais. Diz Bourdieu que “quanto mais um órgão de imprensa ou um meio de expressão pretende atingir um público extenso, mais ele deve perder suas asperezas, tudo o que pode dividir, excluir”¹.
Pois bem, e onde entra o “caso Isabella”? Vejam bem: percebe-se que a cobertura da mídia tem-se esforçado em pintar o pai e a madrasta como culpados da morte da menina. Em qualquer canal de televisão, o telespectador terá informações sobre o fato, que o levam a pensar que o crime já está solucionado: o pai e a madrasta são assassinos. Vejam bem: não quero dizer que eles não sejam culpados, mas antes mesmo da polícia chegar a uma conclusão a mídia induz as pessoas a pensarem nisto. Não há espaço para o contraditório neste caso.
E tem mais: Isabella Nardoni era filha da classe média. Tradicionalmente, quando algum membro da classe média é vítima da violência, a televisão manda a ética para o espaço e super-explora o crime de modo a aumentar sua audiência. Com a mídia martelando, dificilmente as pessoas não sabem do caso e não têm uma opinião – em geral coincidente com a apresentada implicitamente pela mídia. No caso da Isabella: é difícil não se ouvir pessoas dizerem “como é que pode um pai fazer isto com sua filhinha?” (reparem que a polícia ainda nem chegou à conclusão sobre quem matou a menina!), ou mesmo repetirem o velho brado “tem que matar um cara desses!”.
(charge do Kayser)
Reparem que existem muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo no Brasil, mas a mídia dá destaque ao “caso Isabella”. É a lógica do “ocultar mostrando”, da qual Bourdieu fala: mostra-se muito uma coisa, e assim deixa-se de mostrar outras que poderiam ser importantes. E assim todos ficam fissurados pelo “caso Isabella”, e quem não sabe é tratado como “alienado”. Meu irmão estranhou a capa da IstoÉ desta semana, que mostrava – é claro! – a Isabella, e minha mãe respondeu na hora: “Mas como tu não sabe?”, como se o assassinato da menina fosse mais importante para nós do que, por exemplo, a poluição do Guaíba.
Deste modo, a mídia acaba influenciando nas discussões cotidianas, gerando uma “comoção geral”. No momento, é a Isabella. Ano passado, tivemos o acidente da TAM – quando todo mundo falava sobre aviação, “grooving”, reverso etc., e no fim “a culpa era do Lula” – e o “caso João Hélio”, um crime “bárbaro” cometido por menores de idade – ótimo para se defender pena de morte e redução da maioridade penal, toda hora se falava disso na televisão!
Clique aqui para ler uma ótima crítica do antropólogo Roberto Albergaria à cobertura midiática do caso. E leia também o que o Valter escreveu no Moldura Digital a respeito do assunto.
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¹ BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 63.
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