Diferenciação da Universidade Brasileira
Paulo Costa Lima
De Salvador (BA)
O sistema universitário brasileiro teve como principal estratégia de construção a modelagem em experiências de outros países. No geral foi uma decisão acertada - era preciso produzir resultados com rapidez, respondendo à secular exclusão desse nível de construção de conhecimento - mas trouxe conseqüências.
São 'efeitos colaterais' que surgem da intensificação de mecanismos que sempre estiveram presentes em nossa sociedade - mecanismos de supervalorização daquilo que é estrangeiro, pouco exercício de crítica, pouca atenção para soluções surgidas do nosso próprio tecido social.
Os tempos recentes de redemocratização vêm acentuando a importância do tema da diferenciação da universidade brasileira. Três grandes vias se destacam:
a) A focalização de temas estratégicos para nossa população;
b)O reconhecimento integrador de processos culturais de produção de conhecimento; c)A mudança do perfil do contingente de estudantes, por exemplo, através de cotas.
A primeira linha se estabelece antes mesmo da criação do sistema universitário. Cito como exemplo emblemático a Escola Tropicalista de Medicina, da Bahia, com o trabalho pioneiro que inicia em torno de 1860, focalizando a etiologia das doenças que acometiam as populações pobres do país. De lá pra cá houve uma multiplicação significativa de grupos dedicados ao estudo de problemas da nossa realidade, gerando conhecimento e excelência em múltiplos campos.
A segunda linha é mais radical embora um tanto esquiva - qual o seu marco histórico? Ela aponta para tudo aquilo que se descobriu no embate com essas terras americanas. Tudo que se inventou nos grotões, que se confabulou nos povoados, que se materializou em modos de vida e de resistência - especialmente no âmbito dos 'de baixo' -, e que foi ficando cada vez mais remoto com relação ao mundo do conhecimento.
Creio que uma de suas vertentes geradoras tenha sido o trabalho em antropologia, e especialmente a fronteira entre antropologia e educação. Vale aqui um famoso lema de Carlos Rodrigues Brandão: "ir ao encontro da comunidade e retrabalhar com ela sua própria cultura".
Para Luiz Eduardo Wanderley (PUC-SP), a crítica ao modelo universitário deve propiciar a inserção de elementos da cultura popular na universidade, integrando esses elementos à ciência, numa proposta que ecoa Paulo Freire. O fato é que, nesse campo de interação metodológica, a própria instituição é colocada em parêntesis.
Ao descobrir outras modalidades de produção de conhecimento, estudantes e pesquisadores se defrontam com a possibilidade de uma universidade muito distinta do modelo hegemônico - veja o conceito de Comuniversidade proposto por Felippe Serpa. Um breve exemplo ilustra a situação.
Salvador tem mais de 1200 terreiros de candomblé! São centros ativos de cultura afro-brasileira e formam uma rede impressionante de formação de percussionistas. As universidades que formam músicos de percussão podem ignorar essa rede? Fundadas a partir do espírito do conservatório europeu, a tendência natural sempre foi justamente esta. Ignorar.
Como poderia ser construído um processo de formação em percussão que dialogasse com essa riqueza? Vai alterar a estrutura curricular herdada do modelo da Juilliard School (New York) na década de 60. Exigiria o reconhecimento do mérito dos grandes mestres-alabês da cidade (que poderiam ensinar na universidade) e uma série de outras "transgressões" ao modelo.
Aliás, vale ressaltar o trabalho pioneiro do Prof. Jorge Sacramento (da UFBA) que vem dando passos importantes para o intercâmbio com o mundo negro da percussão em Salvador.
Ora, esse potencial transformador propiciado pelo encontro de formas distintas de conhecimento não aparece apenas no campo da música, na verdade se espalha por inúmeras outras áreas - moradia, saneamento, práticas de saúde e prevenção de riscos, gestão social, economia solidária, história oral, formação de professores, meio ambiente, as artes em geral...
Mas o que vemos é que muitas vezes a cidade fala uma língua e os universitários, outra. Especialmente com a multiplicação recente de organizações privadas, que concebem o processo educacional apenas como lucratividade - degradando o coração da empreitada.
Toda essa energia de transformação aparece no campo da extensão universitária, que vem apregoando a necessidade de outras práticas institucionais desde o início da década de 90 (veja www.renex.org.br). Alguns passos foram dados. Poucas vezes, todavia, tem conseguido fôlego e empoderamento suficiente para concretizar as transformações que visualiza. Ora, não se trata de um problema específico da extensão, trata-se da concepção de novos modelos de universidade.
A terceira linha é mais recente. Surgiu com a política de cotas. A instituição permanece a mesma, muda o contingente (em tese). Se, do ponto de vista capitalista a universidade é o lugar da hierarquização da força de trabalho (está longe de ser só isso) - com a presença de cotistas das escolas públicas, essa função ganha novos atributos.
Por exemplo: desaparece a aura de clube de classe média em busca dos diplomas. A construção de conhecimento ganha um papel diretamente ligado à superação da desigualdade, e não tenho dúvida que esse aporte gera um mundo de conseqüências pedagógicas.
Aliás, estamos apenas esboçando direções e bem sabemos que nada disso são apenas flores. A universidade é aquele lugar onde a paixão pela aventura do conhecimento e da transformação sempre se depara com a criatividade secular de mil treitas para permanecer igual.
O tema da diversificação é deveras relevante e merece mais espaço e reflexão. Senão vejamos...
Paulo Costa Lima é compositor, pesquisador CNPq, professor-doutor da Escola de Música da UFBA e membro da Academia de Letras da Bahia. Apresentou obras em festivais no Carnegie Hall, Lincoln Center, Musikhaus (Berlim), Sala Rode Pomp, São Paulo, Cecília Meirelles, TCA, entre outras.
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