sábado, 13 de novembro de 2010

Civilização ou Barbárie, volume 2

"Um povo que ignora seu passado, não entende o presente, não terá meios de construir um futuro"

Márcia Denser*
Volto ao tema da coluna de 22/10 "Cultura ou Barbárie", que retorna e retorna insistentemente, detonado pelo processo das últimas eleições. Durante meses conversei com muita gente e tirei algumas conclusões desnorteantes: descobri que há um total desconhecimento de acontecimentos importantes da história recente do Brasil digamos, pós-1964, (nem é preciso ir muito longe), por parte de jovens da classe média cursando – pasmem! – as três universidades de maior renome em São Paulo (ergo no Brasil): USP, PUC e Mackenzie. E se conhecimento havia, seus desdobramentos ou consequências se mostravam truncados ou equivocados ou falhos ou incompletos ou meramente absurdos, até hilariantes. Como um organismo malformado, “o conjunto dos saberes históricos construídos” virou uma espécie de Frankstein na cabeça de muitos jovens.

A que atribuir isso: má formação familiar? Má orientação escolar primária e secundária? Falha do sistema educacional? Ausência de leituras? Falta de interesse do pais? Dos professores? A ação insidiosa dum conjunto de preconceitos/clichês/meias-verdades que assola o universo midiático? O festival de besteiras que continua assolando mais do que nunca o país? Apagamento sistemático da memória recente pela ação de dispositivos tecnológicos?

Deve ser um mix de tudo isso. E muito mais.

Mas um artigo recente de Emir Sader se propõe iluminar alguns elementos desta questão, que acredito crucial, um vez que civilização e barbárie é o tema predominante no capitalismo contemporâneo. Universalizado (ou normalizado) a partir da Europa ocidental, o capitalismo qualificou todas as outras civilizações como ‘bárbaras”, a ponto do Ocidente forjar uma noção de Oriente que inclui tudo o que não é Ocidente: mundo árabe, japonês, chinês, indiano, africano, etc. Ocidente tornou-se sinônimo de civilização e Oriente é o resto, isto é, idêntico a barbárie. No cinema, na literatura, nos discursos, civilização é identificada com a Europa Ocidental e EUA. Brancos, cristãos, anglo-saxões, protestantes – sinônimo de civilizados. Eis o eixo da colonização da periferia, a quem queriam trazer sua “civilização”.

Através de Hollywood, os EUA globalizaram a visão racista do mundo. Os westerns “civilizavam” através das campanhas de extermínio das populações nativas, o cowboy era o “mocinho” e os indígenas, os “bad guys”. Os filmes de guerra foram sempre contra outras etnias: asiáticos, árabes, negros, latinos. Interessante é que o país que promoveu o maior massacre do século passado – a Alemanha nazista, com o holocausto de judeus, além de comunistas e ciganos - foi sempre poupada pelos norte-americanos, porque ambos são essencialmente semelhantes: brancos, capitalistas, protestantes.

Os países que supostamente encarnavam a “civilização” se engalfinharam nas duas guerras mundiais do século XX pela repartição das colônias – do mundo bárbaro – entre si, em selvagens guerras inter-imperialistas. Essa ideologia foi importada pela direita paulista, aquela que se expressou no “A questão social é questão de polícia” de Washington Luis (como o FHC, carioca importado pela elite paulista) derrubada por Getúlio e que passou a representar o anti-getulismo na política brasileira. Tentaram retomar o poder em 1932 – como bem caracterizou Lula: nada de revolução, apenas um golpe, uma tentativa de contra-revolução -, perderam e foram sucessivamente derrotados nas eleições de 1945, 1950, 1955.

Quando ganharam, foi apelando para uma figura caricata de moralista, Jânio Quadros, que não durou meses na presidência. (Aliás, outra “alucinação coletiva” impingida pela ultradireita, que também durou pouquíssimo, foi Collor - e a História se repetindo, não só como farsa, pior, como piada de mau gosto).

Voltando: aí, em 1964, apelaram aos militares que implantaram, digamos, “seu estilo” ao resto do país, a ferro e fogo. Foi o governo por excelência dessa elite. Paz sem povo – como o Serra prometia para o campo: paz sem o MST.

Veio a redemocratização e essa direita se travestiu de neoliberal, de apologista da civilização do mercado, aquela para a qual, ”quem tem dinheiro, tem acesso aos bens; quem não tem, fica excluído”. O reino do direito de alguns contra os direitos para todos. Essa elite paulista nunca aceitou os direitos dos trabalhadores e seus sindicatos. Elite que se achava a locomotiva do país “arrastando vagões preguiçosos”, segundo a ideologia de 1932. Elite que sataniza nordestinos, indígenas, negros, gays, mulheres, idosos. Demoniza geral.

Contudo, civilizados são os que governam para todos, que buscam convencer as pessoas com argumentos e propostas, que garantem os direitos de todos, que praticam a democracia. São os que estão construindo uma democracia com alma social. Pela primeira vez no país.

Um povo que ignora seu passado, não entende o presente, não terá meios de construir um futuro. Voltamos ao assunto, nas próximas colunas.

*A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), A Ponte das Estrelas (1990), Toda Prosa (2002 - Esgotado), Diana Caçadora/Tango Fantasma (2003,Ateliê Editorial, reedição), Caim (Record, 2006), Toda Prosa II - Obra Escolhida (Record, 2008). É traduzida na Holanda, Bulgária, Hungria, Estados Unidos, Alemanha, Suiça, Argentina e Espanha (catalão e galaico-português). Dois de seus contos - O Vampiro da Alameda Casabranca e Hell's Angel - foram incluídos nos 100 Melhores Contos Brasileiros do Século, sendo que Hell's Angel está também entre os 100 Melhores Contos Eróticos Universais. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUCSP, pesquisadora de literatura, jornalista, curadora de Literatura da Biblioteca Sérgio Milliet em São Paulo.


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