O maior símbolo de paz do Rio pode se tornar, hoje, alvo de uma disputa que mais se aproxima de uma guerra. A arena será o 11 Congresso Mundial de Art Déco, em Copacabana, onde haverá uma mesa de debates, às 13h30m, justamente sobre o maior monumento do gênero no mundo, o Cristo Redentor. O problema será o tom nada cristão da discussão. No evento, os herdeiros do escultor francês Paul Landowski (1875-1961) e a Adagp, agência francesa que se ocupa de direitos autorais, vão divulgar um documento em que afirmam que Landowski é o único responsável pelo projeto de construção do Cristo e que pede, ainda, que a Arquidiocese do Rio, instituição responsável pela imagem da estátua, reconheça os direitos da família. Na mesma mesa, porém, estará Bel Noronha, bisneta do brasileiro Heitor da Silva Costa (1873-1947), o engenheiro que cuidou de todo o processo da construção e, segundo ela, concebeu a obra e apenas contratou Landowski para realizar a maquete do Cristo e modelar as mãos e a cabeça da estátua. Informada pelo GLOBO do teor do documento da família de Landowski, Bel promete entrar na Justiça contra os franceses.
O Congresso de Art Déco começou no domingo passado, no Hotel Windsor Atlântica, e segue até o próximo. O confronto entre as duas versões sobre o Cristo, certamente o ponto mais polêmico do evento, será polarizado entre Bel - ela é diretora do documentário "Christo Redentor", prepara um livro para o fim do ano sobre o monumento e vai abrir, em outubro, uma exposição no Forte de Copacabana comemorando os 80 anos de sua inauguração - e o historiador de arte Adon Peres, brasileiro radicado na Europa, autor do livro "O Cristo do Rio e o Muro dos Reformadores em Genebra". Para Peres, Silva Costa foi apenas o engenheiro encarregado de encomendar a escultura ao francês e chefiar sua construção.
- Na verdade, Heitor da Silva Costa foi um chefe de orquestra. Ele foi encarregado de construir um monumento, mas, das ideias dele, muito pouco ficou. A ideia estilística é do Landowski, e empresas francesas fizeram os cálculos técnicos - diz Peres.
A presença do historiador visa fortalecer o documento que será apresentado pela família de Landowski. "Não se trata de uma obra coletiva, mas de uma obra realizada a partir de um projeto original do escultor (Landowski) com a ajuda de uma equipe constituída pelo engenheiro Albert Caquot e ajudantes, enviados por Landowski ao Brasil e que participaram da realização", diz o comunicado. Os herdeiros do francês contestam, também, a cessão dos direitos de imagem à Arquidiocese do Rio: "Ao contrário do que afirma a Arquidiocese do Rio de Janeiro, nenhum documento atesta qualquer cessão dos direitos de autor a terceiros. Paul Landowski menciona no seu diário uma proposta pouco honesta que teria sido feita por Silva Costa, mas apenas os direitos ligados à manutenção da estátua foram cedidos." O comunicado se encerra dizendo que os herdeiros de Landowski "não pedem hoje nada mais do que o reconhecimento do direito de autor, tal como formulado pelas convenções internacionais".
- Eu pessoalmente não tenho interesse em reivindicar nada de dinheiro. O mais importante para mim é o reconhecimento, como artista, de Landowski como autor do Corcovado. Queremos que a exploração comercial da obra dele seja feita com o nosso acordo. Depois, poderemos ceder os direitos a quem quisermos - explica a museóloga Elizabeth Caillet, neta de Landowski. - Gosto muito da Bel Noronha. Acho que ela entendeu que Silva Costa foi chefe de projeto. Ele não é autor. Na França, autoria é reservada a artistas. E Silva Costa não era artista.
Segundo os franceses, o Cristo surgiu de uma encomenda feita em 1925 por Heitor da Silva Costa, "iniciador do projeto", a Landowski. Só que Bel Noronha lembra que a concepção e execução do projeto do Cristo Redentor levou dez anos, entre 1921 e 1931, e que Landowski esteve envolvido em apenas dois. Ela afirma que tanto o escultor francês quanto Albert Caquot foram convidados por Silva Costa para o projeto, como parte da equipe. Landowski, inclusive, nunca teria vindo ao Brasil.
- Eu sou carioca. Para mim e para a minha família, o Cristo é da cidade. Jamais ganhamos dinheiro com ele - afirma Bel. - Já alguns parentes do Landowski têm interesse financeiro. Sempre que podem, eles tentam receber pagamentos pelo uso da imagem. Em 2006, num jantar na casa de Françoise, filha de Landowski que já faleceu, propuseram para mim que nos juntássemos para reaver os direitos da Arquidiocese.
Bel lembra, ainda, que os herdeiros de Landowski eventualmente entram na Justiça pedindo pagamentos pelo uso da imagem do Cristo Redentor. Numa dessas ações, o juiz Ricardo Felicio Scaff, da 8 Vara Civel do Fórum de São Paulo, deu ganho de causa à joalheria H. Stern há três meses, numa ação movida pelos franceses contra a empresa pelo uso da imagem em pingentes e outros adornos. A utilização havia sido autorizada pela Arquidiocese do Rio. "A referida obra detém natureza de obra coletiva, cuja gestão e execução foram encomendadas ao arquiteto Heitor da Silva Costa após realização de concurso público", diz Scaff, em sua decisão. Os herdeiros, porém, estão recorrendo na Justiça.
No debate do Congresso de Art Déco, Bel levará consigo dois documentos que comprovariam o equívoco e a má-fé dos herdeiros do escultor francês. Um deles é uma declaração assinada por Landowski e reconhecida em cartório em 14 de fevereiro de 1925, que pertence ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio, em que ele diz: "Autor da parte escultural da maquete do Monumento do Cristo Redentor, que deve ser erigida no cimo do Corcovado, de acordo com os planos e desenhos do senhor Da Silva Costa, arquiteto no Rio de Janeiro, delego a este último bem como à Comissão do Monumento plenos poderes para conceder as necessárias autorizações para as reproduções da imagem da maquete deste monumento." O outro foi assinado por Françoise Landowski Caillet, filha do escultor, em que ela reconhece que, "por um pedido do senhor Heitor da Silva Costa", seu pai "elaborou a maquete da estátua do Cristo Redentor, especialmente a cabeça e as mãos."
Bel já está em contato com seus advogados para entrar na Justiça contra os herdeiros do escultor francês. Já segundo a Arquidiocese do Rio, o caso está entregue a seu departamento jurídico. O Cristo Redentor, por sua vez, segue com os braços abertos sobre a Guanabara. Mas um pouco envergonhado.
O Globo
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