A aplicação de um arremedo de Justiça em
alguns casos do “mensalão”, sobretudo nos de Dirceu e Genoíno, nos
remete aos métodos dos antigos tribunais de Inquisição nos quais a prova
técnica era dispensada e a decisão era o domínio da suposição e do
arbítrio. Para o resto de nossa História, a maioria deste Supremo que
não conheceu a ditadura comportou-se como se fosse um tribunal
ditatorial. Como escreveu Weber, sob as condições de uma democracia de
massa, a opinião pública é a conduta social nascida de sentimentos
irracionais. O artigo é de J. Carlos de Assis.
J. Carlos de Assis (*)
Escrevi anteriormente que o Supremo, no julgamento do chamado
“mensalão”, violou as bases formais do Direito Brasileiro, fundado no
Direito Romano, ao ignorar a necessidades de provas concretas para
incriminação de réus, especialmente de Dirceu e Genoíno. Eis meus
fundamentos:
“A interpretação ‘racional’ da lei, à base de conceitos rigorosamente
formais, opõe-se ao tipo de adjudicação ligado primordialmente às
tradições sagradas. O caso à parte, que não pode ser resolvido sem
ambiguidades pela tradição, é solucionado pela ‘revelação’ concreta
(oráculo, profecia ou ordálio – isto é, pela justiça ‘carismática’) ou –
e apenas esses casos nos interessam aqui – pelos juízos informais
prestados em termos de avaliações éticas concretas, ou outras avaliações
práticas. É a ‘justiça do Cádi’, como adequadamente a chamou R.
Schmidt. Ou os julgamentos formais são feitos não pelo suposição de
conceitos racionais, mas pelo recurso às ‘analogias’ e dependendo dos
‘precedentes’ concretos e de sua interpretação. É a ‘justiça empírica’.
A justiça do Cádi não conhece qualquer julgamento racional. Nem a
justiça empírica do tipo puro apresenta quaisquer razões que possam, em
nosso sentido, ser chamadas de racionais. O caráter avaliativo concreto
da justiça do Cádi pode avançar até o rompimento profético com toda a
tradição. A justiça empírica, por sua vez, pode ser sublimada e
racionalizada numa ‘tecnologia’. Todas as formas não-burocráticas de
domínio evidenciam uma coexistência peculiar: de um lado, há uma esfera
de tradicionalismo rigoroso, e, do outro, uma esfera de arbitrariedade
livre e de graças senhoriais. Portanto, as combinações e as formas de
transição entre esses dois princípios são muito frequentes; serão
discutidas em outro contexto.
Ainda hoje, na Inglaterra, como Mendelssohn demonstrou, um amplo
substrato da justiça é, na realidade, do tipo de justiça de Cádi, em
proporções dificilmente concebíveis no continente europeu. (...) Na
Inglaterra, a razão para o fracasso de todos os esforços de uma
codificação racional da lei, como o fracasso de se copiar o Direito
Romano, foi devido a uma resistência bem sucedida contra essa
racionalização por parte das grandes corporações de advogados,
organizadas centralmente. Essas corporações formavam uma camada
monopolista de notáveis, entre os quais eram escolhidos os juízes das
altas cortes do reino. Eles conservavam em suas mãos o treinamento
jurídico, como uma tecnologia empírica e altamente desenvolvida, e
combatiam com êxito todos os movimentos em favor do direito racional,
que lhes ameaçava a posição social e material. Tais movimentos nasceram
nos tribunais eclesiásticos e, durante algum tempo, também nas
universidades. (...)
Toda espécie de ‘justiça popular’ – que habitualmente não pergunta pelas
razões e normas – bem como toda espécie de influência intensiva sobre a
administração da chamada opinião pública, cruza com o mesmo vigor o
caminho racional da justiça e administração, e em certas circunstâncias,
ainda com mais vigor, como o que pôde fazer o processo da ‘câmara das
estrelas’ do governante ‘absoluto’. Ou seja, sob as condições de
democracia de massa, a opinião pública é a conduta social nascida de
‘sentimentos irracionais’.
Normalmente, ela é encenada, ou dirigida pelos líderes partidários e pela imprensa.” (In. Weber, Max. Ensaios de Sociologia, Zahar Editores, 3ª. Edição, p. 251 e sgs., “Burocracia e Direito”. Pela transcrição, JCA.)
Em termos mais diretos, a aplicação de um arremedo de Justiça em alguns
casos do “mensalão”, sobretudo nos de Dirceu e Genoínio, nos remete aos
métodos dos antigos tribunais de Inquisição nos quais a prova técnica
era dispensada e a decisão era o domínio da suposição e do arbítrio.
Para o resto de nossa História, a maioria deste Supremo que não conheceu
a ditadura comportou-se como se fosse um tribunal ditatorial.
(*) Economista e professor de Economia Internacional da UEPB, autor
do recém-lançado “A Razão de Deus”, pela editora Civilização Brasileira.
Esta coluna sai também nos sites Brasilianas e Rumos do Brasil, e, às
terças, no jornal carioca “Monitor Mercantil”.
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