Patrick Mariano Gomes, especial para o Viomundo
O julgamento da Ação Penal 470 no Supremo Tribunal Federal estarrece,
dia após dia, aqueles que aprenderam ser a Constituição da República o
documento legislativo mais importante de uma Democracia.
Leio hoje, nos jornais, que o eminente ministro relator do processo,
Joaquim Barbosa, antes mesmo do trânsito em julgado, determinou a
apreensão dos passaportes de todos os condenados, bem como a inclusão de
seus nomes na lista de controle dos aeroportos, da Polícia Federal.
Segundo o ministro (1), a nova Lei das Cautelares (12.403/2011)
possibilitou ao juiz, estabelecer medidas cautelares alternativas à
prisão preventiva e teriam como marca característica o fato de
implicarem em interferência menos lesivas na esfera de direitos
subjetivos dos acusados.
Contrariando o próprio enunciado, segue o raciocínio do eminente ministro:
“Com efeito, a proibição de o acusado já condenado ausentar-se do
País, sem a autorização jurisdicional, revela-se, a meu sentir, medida
cautelar não apenas razoável como imperativa, tendo em vista o estágio
avançado das deliberações condenatórias de mérito já tomadas nesta ação
penal pelo órgão máximo do poder Judiciário do País – este Supremo
Tribunal Federal.”
Vê-se, portanto, que toma como pressuposto de partida de sua
fundamentação, a constatação de que o julgamento do processo estaria em
estágio avançado.
Primeiramente, importante se faz relembrar o contexto de elaboração da
nova Lei das Cautelares, instrumento normativo no qual se baseou o
ilustre ministro para justificar a ação cautelar contra os acusados.
A proposta de alteração legislativa foi elaborada pela Comissão de
Juristas constituída pela Portaria/MJ nº 61, de janeiro de 2000 e foi
objeto de diversos debates com segmentos da sociedade envolvidos com o
tema, culminando no evento III Jornadas Brasileiras de Direito
Processual Penal (Brasília, agosto de 2000).
A ideia central da Proposta da Comissão de Juristas, em breve síntese e
de acordo com a justificativa apresentada, foi de “proceder ao ajuste do
sistema às exigências constitucionais atinentes à prisão e à liberdade
provisória e colocá-lo em consonância com modernas legislações
estrangeiras, como as da Itália e de Portugal”.
Dados do DEPEN apontam que 39,3 % da população carcerária brasileira são
presos provisórios, sendo que em onze (2) estados brasileiros a
proporção de custodiados cautelarmente é maior que o de condenados por
sentença penal com transito em julgado. O Piauí é o Estado em que esta
proporção é maior: 76,1 %.
Portanto, um sistema de justiça criminal abrigado sob a égide do Estado
Democrático de Direito que tem entre seus princípios a presunção de
inocência, não pode apresentar tais constatações estatísticas.
As reformas nos Códigos Processuais Penais na Itália e Portugal visaram,
como aqui, corrigir tal situação, daí a inspiração da Comissão de
juristas, origem da presente Lei que serviu de fundamento ao ministro
J.Barbosa.
No entanto, com o devido respeito ao ministro Relator da ação penal 470,
é nítida a contradição entre a intencionalidade legislativa e o ato
decisório em si. A decisão judicial que confiscou os passaportes de 25
acusados representa ofensa ao princípio constitucional da presunção de
inocência e ao dever constitucional de se fundamentar todos atos
decisórios.
O simples fato do julgamento estar em estágio avançado, não se
constitui, por si, argumento suficiente para embasar a ação cautelar
contra os acusados. Não é para isso que servem as medidas cautelares da
nova Lei. Como o próprio enunciado recomenda, trata-se de medidas
alternativas à pena de prisão que deveriam fazer frente e diminuir os
índices alarmantes de prisão provisória no Brasil.
Ademais, para determinação de qualquer medida cautelar no Processo Penal
é imprescindível demonstrar, com concretude fática, sua
imprescindibilidade para o processo.
Este “estágio” seria um primeiro elemento “justificador”. No entanto, existem outros. Vejamos.
Joaquim Barbosa aduz que a medida seria necessária, pois:
“alguns dos acusados vêm adotando comportamento incompatível com a
condição de réus condenados e com o respeito que deveriam demonstrar
para com o órgão jurisdicional perante o qual respondem por acusações de
rara gravidade.”
Mesmo a leitor que não seja da área jurídica, uma primeira indagação
possível seria: a quais acusados se refere, dentre todos, o eminente
ministro? Qual comportamento seria incompatível?
A decisão é lacunosa quanto a estas perguntas. Por sua vez, o inciso IX,
do art. 93 da Constituição da República, expressamente determina:
IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão
públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (…)
Somente para fins de argumentação, aceitando como válida a fundamentação
do ministro Joaquim Barbosa, teríamos que a medida seria conveniente
para fazer com que os acusados se comportassem como “réus condenados” e
para que estes “respeitassem” o órgão jurisdicional.
Ora, mais uma vez aqui se foge dos pressupostos legais para se
determinar medida cautelar contra os acusados. Pior que isso, a decisão
judicial quer obrigar os acusados a violarem o art. 5º da Constituição
da República que estabelece, dentre os Direitos e Garantias Fundamentais
que:
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
É teratológico exigir a qualquer cidadão que responda a processo
penal e sobre o qual não se constata o trânsito em julgado, que tenha
comportamento diferente ao de um cidadão inocente. Era preciso que o
eminente ministro apontasse quais dos acusados e qual o comportamento
destes seria incompatível com a condição de réus condenados.
Determinar uma medida cautelar de confisco de documentos para que os
acusados “respeitem” o órgão jurisdicional perante o qual respondem as
acusações não é fundamentação constitucionalmente válida. Analisemos os
outros argumentos.
Aponta, ainda, a necessidade da medida no fato de uns acusados,
“(…) terem realizado viagens ao exterior nesta fase final do julgamento.”
Mais uma vez se indaga: quais dos acusados realizaram viagens ao exterior?
A decisão, mais uma vez é lacunosa. Ao não apresentar resposta, nega
vigência ao inciso IX do art. 93 da Constituição da República que exige
fundamentação de todos os atos decisórios.
Ainda que se admitisse como válida a argumentação do eminente ministro,
não se sustenta, dado que o fato de responder a processo penal ainda não
transitado em julgado, como demonstramos, não implica, por si,
restrição ao direito de ir e vir.
Por fim, a decisão pune os acusados com a retenção dos documentos pessoais, em razão destes:
“(…) darem a impressão de serem pessoas fora do alcance da lei, a
ponto de, em atitude de manifesta afronta a este Supremo Tribunal
Federal, qualificar como “política” a árdua, séria, imparcial e
transparente atividade jurisdicional a que vem se dedicando esta Corte,
neste processo, desde o dia 2 de agosto último. Atividade jurisdicional
que, ao longo de todos esses meses, jamais se desviou dos cânones
constitucionais e civilizatórios representados pelos princípios da
imparcialidade, da ampla defesa, do contraditório, da presunção de
inocência, rigorosamente observados até se chegar a édito condenatório
densamente fundamentado por todos.”
Talvez, dentre todas, esta argumentação seja a de maior cariz
autoritário. Mais uma vez se indaga: quais acusados deram a impressão de
serem pessoas fora do alcance da Lei?
Ora, constitui fundamento inerente ao Estado Democrático de Direito, a
livre manifestação do pensamento. Liberdade que é direito de todos os
cidadãos, respondam eles a processo ou inquérito. Estejam eles livres ou
soltos. Independente de raça, cor ou religião, a todos, repita-se por
oportuno, a todos é garantido o direito de livremente se expressarem!
A própria Corte Constitucional, pelo fato de ser composta por indicação
do Chefe do Poder Executivo, não tem como negar sua vocação política,
pois irradia decisões da mais alta relevância para o sistema de justiça
nacional.
O argumento é monstruoso, pois, ainda que aceitássemos a hipótese de
estarem todos os acusados cumprindo pena em um estabelecimento penal,
nada, nem ninguém, lhes retiraria o direito de livremente se
manifestarem.
Querer cercear o direito de expressão dos acusados com a medida de
confisco de documentos pessoais viola a Constituição da República e as
leis vigentes no País.
O que preocupa, para além da violação dos direitos individuais dos
acusados é que tal decisão, emanada da mais alta Corte do País, irradie
seus efeitos para o sistema de justiça criminal. Será nefasto tamanho
desvirtuamento da nova Lei das Cautelares que veio, como afirmado no
início, para tentar amenizar a realidade dos presos provisórios no
Brasil e fazer uma releitura do Código de Processo Penal à luz da
Constituição da República de 1988.
A luta pela afirmação constante e perene dos preceitos Constitucionais e
legais é dever de todos aqueles que acreditam na Democracia.
Para concluir, importante registrar que, alguns dos acusados sobre os
quais incidiu a decisão aqui contestada – nominaremos por dever
histórico – foram presos e torturados para que hoje vivêssemos sob o
manto das liberdades Democráticas. Falo aqui de José Dirceu de Oliveira e
Silva e José Genoino Guimarães Neto.
Patrick Mariano Gomes é advogado, integrante da Rede Nacional
de Advogados e Advogadas Populares (Renap) e mestrando em Direito,
Estado e Constituição na Universidade de Brasília – UnB.
[2] Relatório de 2008/2009, “Sistema Penitenciário no Brasil, Dados
Consolidados”, do Departamento Penitenciário Nacional, órgão do
Ministério da Justiça. O estados de PE, MA, AM, CE, PI, MT, PA, AL, MG,
SE, RR possuem mais presos provisórios que condenados com trânsito em
julgado. Com destaque para os estados do Piauí (76,1%), Alagoas (70,9%),
Sergipe (68,4%), Amazonas (65,2%) e Pernambuco (64,9%). Com relação a
2008, houve um aumento de 13863 novos presos provisórios. Documento
encontrado no link: < http://portal.mj.gov.br/depen/data/Pages/MJC4D50EDBPTBRNN.htm > acesso em 04.02.2011.
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