Jurisprudência do mensalão deixa bancos e empresas apreensivos
Cristine Prestes e Laura Ignacio | Valor Econômico
O destino dos 25 condenados no caso do mensalão está longe de ser a
única consequência do julgamento do processo pelo Supremo Tribunal
Federal (STF). Entre empresas, bancos e advogados que atuam para
corporações o clima hoje é de apreensão. As profundas mudanças
promovidas pela Corte em sua jurisprudência durante a análise da Ação
Penal nº 470 produzirão impactos diretos no ambiente de negócios do
país.
"Qualquer executivo, a partir do mensalão, vai estar muito mais
preocupado em assinar qualquer liberação de recursos para evitar o que
aconteceu no caso do Banco do Brasil e do Banco Rural ", afirma o
gerente regional de compliance e segurança corporativa de uma multinacional presente em mais de 70 países, inclusive no Brasil.
O executivo, que preferiu não se identificar, refere-se à condenação de
executivos que exerceram postos-chave no Banco Rural e no Banco do
Brasil à época dos fatos em julgamento. No caso do Rural, três
executivos do staff da instituição à época dos fatos foram
condenados pelo Supremo - inclusive a própria dona do banco, Kátia
Rabello, acusada de formação de quadrilha, gestão fraudulenta, evasão de
divisas e lavagem de dinheiro por ter realizado empréstimos fictícios
para o Partido dos Trabalhadores (PT) por intermédio das empresas do
publicitário Marcos Valério Fernandes de Souza, considerado o operador
do mensalão. Já no caso do Banco do Brasil foi condenado, por corrupção
passiva, peculato e lavagem de dinheiro, o ex-diretor de marketing
Henrique Pizzolato.
"O risco aumentou, e aumentou muito, porque agora qualquer
administrador pode ser condenado por lavagem de dinheiro sem que tenha
tido a intenção de cometer o crime", diz um outro executivo que atua em
uma entidade de classe do setor empresarial.
O aumento do risco entre empresas e bancos ainda é uma sensação, já que o
Supremo não concluiu o julgamento do mensalão - ainda precisa definir
as penas dos condenados. Da mesma forma, a aplicação dos novos
entendimentos da Corte pela Justiça de primeira e segunda instâncias do
país e seu uso pelo Ministério Público em denúncias por crimes
econômicos ocorrerá paulatinamente, até mesmo diante da morosidade
característica do Judiciário brasileiro. Ainda assim, trata-se de uma
impressão baseada no resultado decorrente de alguns dos mais complexos e
combativos debates entre os ministros da Suprema Corte na história da
República.
Entre as novidades geradas a partir do confronto de posições dos
ministros do Supremo, uma das mais eloquentes e preocupantes, segundo as
fontes ouvidas pelo Valor, é a chamada teoria do domínio do
fato. Usada pela primeira vez pela Corte para basear uma condenação
criminal, ela permite que se atribua responsabilidade penal a quem
pertence a um grupo criminoso, mas não praticou diretamente o delito
porque ocupava posição hierárquica de comando. Foi esse o argumento
usado para condenar, por corrupção ativa e formação de quadrilha, o
ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu, considerado o réu número um
do mensalão.
O temor de advogados e empresários é o de que a teoria passe a
motivar uma série de processos por crimes econômicos que coloquem, entre
os réus, executivos e administradores de empresas pelo simples fato de
que, em posição hierárquica superior, eles teriam, necessariamente, o
domínio do fato - ou seja, saberiam de atividades ilícitas cometidas por
seus subordinados. Esse receio foi externado durante o próprio
julgamento pelo ministro revisor do processo, Ricardo Lewandowski.
"Preocupa-me como os 14 mil juízes brasileiros vão aplicar essa teoria
se essa Corte não der parâmetros para sua aplicação", disse. "Amanhã
talvez o presidente da Petrobras possa ser responsabilizado por um
vazamento de petróleo porque tem o domínio do fato."
"A teoria do domínio do fato é um risco para o ambiente de negócios",
diz o advogado Eduardo Salomão, sócio do escritório Levy & Salomão
Advogados, banca que presta consultoria jurídica para empresas e tem,
entre seus clientes, mais de 80 instituições financeiras nacionais e
estrangeiras. Salomão cita o exemplo de um banco, cujos gerentes captam
novos clientes que não poderiam aceitar por oferecerem risco à
instituição, mas o fazem com a intenção de incrementar seus bônus. Se
algum desses clientes utilizar o banco para lavar dinheiro proveniente
de crimes, essa prática, se detectada pelas autoridades, pode se
transformar em um processo criminal. "O executivo, como presidente do
banco, poderia ser responsabilizado por ter o domínio do fato", diz.
"Este é um fator de risco a mais para as empresas", afirma Salomão. Com a
teoria, segundo ele, fica mais fácil ao órgão acusador "ir subindo de
nível hierárquico" em termos de responsabilização. "É a metástase
cancerosa da responsabilidade."
"No fundo a teoria é um grande facilitador da possibilidade de punição
[de quem tem o dever de agir ou vigiar]", diz o professor de direito
penal da Universidade de São Paulo (USP), Víctor Gabriel Rodriguez.
Segundo ele, o caso do mensalão inaugurou o uso da teoria do domínio do
fato pelo Supremo. "No caso dos crimes econômicos, daqui por diante
algumas questões serão mais complicadas e de difícil defesa", acredita.
O domínio do fato é a principal inovação, mas não a única, decorrente do
processo do mensalão. Dois importantes novos entendimentos nasceram do
julgamento em relação ao crime de lavagem de dinheiro. O primeiro deles
diz respeito ao tipo de conduta que pode ser punida por lavagem. A
doutrina mundial estabelece que a lavagem de dinheiro existe quando
ocorrem três situações específicas: a ocultação do dinheiro proveniente
do crime, sua dissimulação (em geral no sistema financeiro) e sua
inserção na economia.
No entanto, ao julgar o deputado federal João Paulo Cunha (PT-SP) e o
ex-diretor de marketing do Banco do Brasil Henrique Pizzolato, o Supremo
interpretou a lavagem de dinheiro de outra forma. Os ministros
entenderam, em sua maioria, que a simples ocultação do dinheiro da
corrupção já caracteriza o crime, aumentando muito o escopo das
situações que estariam sujeitas à punição. "O crime de lavagem pode se
consumar já na primeira fase, a fase de ocultação", disse o ministro
decano da Corte, Celso de Mello. Seu colega Luiz Fux foi ainda mais
longe: "Quem compra um carro, uma joia, já pode incorrer em lavagem. O
uso do dinheiro é, sim, lavagem de dinheiro."
O tema não é pacífico nem mesmo dentro do Supremo, a ponto de a decisão
ter gerado protestos do ministro Marco Aurélio Mello - que votou pela
absolvição de João Paulo Cunha e Pizzolato. "Preocupa-me sobremaneira o
diapasão que se está dando ao tipo lavagem de dinheiro", disse o
ministro durante as discussões. Boa parte dos votos proferidos pelo
ministro em relação às imputações de lavagem de dinheiro foi pela
absolvição dos réus - mas ele ficou vencido.
Marco Aurélio também ficou vencido em outra inovação criada pelo
Supremo: a possibilidade de condenação de um acusado sobre o qual não se
tem certeza de que estava ciente da origem ilícita do dinheiro
recebido. Em termos jurídicos, o chamado dolo eventual - quando a pessoa
assume o risco de receber um dinheiro cuja proveniência é obscura.
"Assusta-me brandir que, no caso da lavagem de dinheiro, contenta-se o
ordenamento jurídico com o dolo eventual", disse o ministro, um dos mais
antigos da Corte.
De acordo com o advogado David Rechulski, do escritório que leva seu
nome, o dolo eventual levará as empresas a implementarem políticas de
maior cautela. "Mais cedo ou mais tarde, baseado nesse entendimento, o
Ministério Público deverá atuar com mais intensidade nos casos de
omissão penal relevante, em que haveria o dever legal de agir e a pessoa
ficou inerte", afirma. "Principalmente em relação a gestores de fundos
de investimento, o risco será grande", diz Rechulski.
O advogado Eduardo Salomão também prevê maior disposição dos juízes de
instâncias inferiores em decretar prisões cautelares em casos de
investigações por crimes econômicos. A correlação é de difícil
comprovação, mas os recentes casos de investigação de fraudes em bancos
de pequeno e médio porte, como o PanAmericano e o Cruzeiro do Sul,
levaram à prisão provisória apenas o controlador e ex-presidente deste
último, Luis Octavio Índio da Costa, solto neste fim de semana. No caso
do PanAmericano, todos os ex-administradores respondem a processo penal
em liberdade. Vale lembrar: a fraude no PanAmericano veio a público em
2010, antes, portanto, do início do julgamento do mensalão; já a do
Cruzeiro do Sul foi tornada pública na era pós-mensalão.
Entre as empresas nacionais a impressão é de que o mercado ainda está em
choque com o julgamento do mensalão, dizem advogados. Junta-se a ele a
nova Lei de Lavagem de Dinheiro - a Lei nº 12.683, sancionada em 9 de
julho deste ano -, que permitirá que qualquer tipo de infração penal
seja passível de punição também por lavagem de dinheiro, e está pronto o
novo cenário de risco.
Bruno Salles Ribeiro e Fábio Cascione, do escritório Cascione, Pulino,
Boulos & Santos Advogados, acreditam que mesmo com as rígidas regras
do Banco Central (BC), grandes bancos podem deparar-se com a situação
de ver um crime tributário configurar também lavagem de dinheiro,
resultando na responsabilização do executivo da instituição financeira.
"Isso pode acontecer por terem contato com estruturações financeiras
complexas, como middle marketing e private banking, em planejamentos
tributários mais arrojados", afirma Ribeiro. "Certamente, as autoridades
terão um radar maior em relação a essa possibilidade de interpretação
para pressionar os contribuintes", diz.
Bruno Ribeiro interpreta que, de acordo com o julgamento do mensalão,
mesmo que o executivo não saiba que determinado bem foi proveniente de
uma infração penal, se assumir o risco de usá-lo, o compliance da
empresa falhou e ele pode ser acusado de lavagem de dinheiro. "Por ser
executivo da companhia, por meio de controles internos, ele deveria
saber que usam dinheiro sujo na atividade da empresa", afirma.
De outro lado, o Supremo também entendeu, ao julgar o envolvimento dos
executivos do Banco Rural no mensalão, que o descumprimento de regras de
compliance previstas pelo regulador, no caso o BC, está sujeito à
punição penal, e não apenas a sanções administrativas, como prevê a
lei. Ou seja, o dever de agir em casos suspeitos, como prevê a lei, pode
levar não só a uma punição na esfera administrativa mas também na
esfera penal.
Isso por ter vários efeitos no setor privado. O principal deles é um
aumento gigantesco na responsabilidade dos executivos - que podem ser
condenados por crime de lavagem mesmo que não tenham cometido fraude ou
gerido a empresa de forma temerária ou mesmo que não tenham a menor
pista de que, pela instituição que comandam, circulou dinheiro sujo.
"O julgamento do mensalão, já nesse sentido, dá sinal de que, conforme
essa lei for interpretada, a responsabilização será grave", diz Johan
Albino Ribeiro, assessor jurídico do Bradesco. O diretor da área de
compliance de outro grande banco, que preferiu não ser identificado, diz
que o sistema financeiro já tem regras sedimentadas e com uma
supervisão intensa dos órgãos de controle. "Mas é lógico que, com o
julgamento o mensalão, os executivos ficarão mais atentos e talvez mais
apreensivos", afirma.
Com isso, na prática, as operações do dia a dia dos bancos e das
empresas deverão passar a submeter-se a um controle ainda mais rigoroso,
com treinamento de funcionários, reforçando os conceitos de compliance,
segundo Johan Albino Ribeiro. "Essa é a ação possível: encontrar os
pontos de maior atenção para insistir nos cuidados. Nas relações com
fornecedores, por exemplo, conhecer ainda melhor a empresa, saber mais
sobre de quem ela recebe e para quem ela paga", afirma.
Em razão desse cenário, a demanda das empresas nos escritórios de
advocacia já é de revisão das regras internas para tentar melhorar a
efetividade do compliance, segundo Bruno Ribeiro. "Isso será importante
inclusive em eventuais processos judiciais porque, muitas vezes, a
defesa da empresa acusada de lavagem será a demonstração de um
compliance que comprove que todas as cautelas possíveis para evitar o
risco foram tomadas", afirma Fábio Cascione.
A evolução na jurisprudência do Supremo em relação à lavagem ainda
aguarda confirmação - o que deve ocorrer apenas após a publicação do
acórdão (a decisão condenatória com os votos de todos os ministros). Mas
o intenso debate entre os ministros quando da votação dos crimes de
lavagem do mensalão mostra que, no mínimo, a semente da mudança está
plantada.
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