O golpe de Estado de 1964 tomou a forma de uma operação militar comandada por oficiais de alta patente das forças armadas que assumiram o governo após a queda do presidente João Goulart. Embora a execução do golpe tenha sido essencialmente militar, o movimento para a articulação das forças que intervieram no Estado contou com o apoio de diversas publicações jornalísticas. Importantes jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo cerraram fileiras com o movimento civil e militar que depôs Goulart. Um lado menos conhecido dessa articulação se deu em torno da Rede da Democracia, idealizada João Calmon, deputado do Partido Social Democrático (PSD) e vice-presidente dos Diários Associados, a maior organização na área das comunicações de massa, reunindo jornais, revistas, rádios e emissoras de televisão. Criada no Rio de Janeiro em outubro de 1963, a Rede da Democracia era um programa radiofônico comandado pelas rádios cariocas Tupi, Globo e Jornal do Brasil. Ia ao ar quase todos os dias e repercutia pelo país através de outras centenas de emissoras afiliadas. Os pronunciamentos difundidos pelas emissoras eram posteriormente publicados nos respectivos jornais: O Globo, Jornal do Brasil e O Jornal.
A Rede da Democracia simboliza no campo da imprensa a busca de novas formas de atuação em face dos desafios colocados pela crise política que envolveu o governo Goulart. Seu surgimento é uma forte evidência de que os representantes da imprensa liberal se colocaram como atores políticos no governo Goulart. Criado logo após o presidente solicitar ao Congresso o estado de sítio e denunciar que estava em andamento uma conspiração golpista, esse amplo sistema de comunicação nacional deu voz aos representantes políticos, militares, empresários, jornalistas, professores, intelectuais, sindicalistas e estudantes, possibilitando a articulação no campo discursivo dessas emissoras e jornais do Rio de Janeiro com partidos e grupos de oposição ao governo, principalmente com a União Democrática Nacional (UDN), o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que financiava as campanhas eleitorais dos candidatos anticomunistas.
“A batalha da propaganda”
A rede era uma versão conservadora da Voz da Legalidade, criada por Brizola em 1961, cujas emissoras haviam mobilizado a opinião pública pela posse de Goulart na crise de 61 após a renúncia de Jânio Quadros e, em seguida, passaram a pregar a antecipação do plebiscito com a volta do presidencialismo. Programa radiofônico que criticava as concepções nacionalistas e reformistas, bem como as decisões do governo Goulart, a Rede da Democracia reagiu às forças que incentivavam a maior participação popular na vida política e, sobretudo, amadureceu mudanças que deveriam ser efetivadas na natureza do regime democrático. Com base no diagnóstico de que estava em andamento a subversão das estruturas da sociedade brasileira, os representantes da imprensa carioca construíram propósitos comuns com relação aos temas políticos que precederam o golpe de 1964.
A criação da Rede da Democracia significou, portanto, uma aproximação entre as linhas editoriais de O Jornal, O Globo e Jornal do Brasil, voltados para a articulação de uma comunicação oposicionista que conferia funções políticas à imprensa, num ambiente em que os militares estavam sendo chamados a intervir no Estado. Os discursos apresentados pelos seus proprietários e representantes no dia da inauguração, 25 de outubro, deixam claro que o eixo central se deu em torno do combate ao comunismo, considerado uma ideologia totalitária que visava à desestruturação do regime representativo com o fim dos mecanismos jurídicos que garantiam os direitos individuais, em especial os relacionados à liberdade e à propriedade. O termo comunismo apareceu associado à revolução, em contraposição à ideia reformista aceita pelos jornais, que percebiam no governo omissão no combate a esta ideologia, colocando-se, desse modo, em confronto com a legalidade constitucional e com os tradicionais valores de liberdade da sociedade brasileira.
De fato, Nascimento Brito prognosticou que forças políticas tentariam obter “o consentimento popular para fazerem do Brasil a experiência infeliz que o nazismo, o fascismo e o comunismo impuseram a outros povos”. Nessa linha discursiva também se expressou Roberto Marinho, para quem os brasileiros estavam sendo “vítimas de uma deformação, intencional por parte de uma minoria de demagogos e de comunistas empenhados em envenenar as nossas relações com os países do mundo ocidental”. E João Calmon, representando Assis Chateaubriand, dos Diários Associados, viu no rádio o instrumento político contra o comunismo para ganhar “a batalha da propaganda, que é o episódio mais importante da Guerra Fria”.
A reforma agrária e a ameaça comunista
A Rede da Democracia pregou uma mentalidade de guerra para combater o comunismo e colocou a imprensa no centro dos debates sobre reorganização do regime político. Os representantes da imprensa do Rio de Janeiro haviam perdido a convicção no regime representativo, com seus diversos instrumentos constitucionais de limitação dos poderes, sobretudo após o plebiscito ter decidido pelo retorno ao presidencialismo em janeiro de 1963. A partir daí, uma coalizão forças, envolvendo trabalhistas e comunistas, passou a apostar na mobilização sindical com greves, manifestações de rua e ações políticas extra-institucionais a fim de pressionar o Congresso a aprovar as reformas de base, em particular a reforma agrária. Predominava a percepção de que a ativação política das massas estava articulada ao projeto intervencionista do governo e de que este estimulava o confronto com as tradicionais instituições representativas, colocando na ordem do dia a construção de um tipo de democracia plebiscitária inspirada em Rousseau, como forma de aferição da vontade das grandes maiorias.
Diante desse quadro, surgiram impulsos para se repensar os rumos do Estado, cujas estruturas administrativas estariam sendo apropriadas pelas forças partidárias de apoio ao governo, assim como se exercia controle sobre a máquina sindical com fins políticos considerados antidemocráticos. Apelos para intervenção militar tornaram-se constantes e foram acompanhados de um questionamento sobre os canais de representação da sociedade, num movimento de valorização da própria imprensa. Portanto, nesse momento de crise política encontram-se os elementos de uma nova forma de regime que então começava a nascer na consciência liberal.
Um dos temas mais divulgados pela Rede da Democracia, que revela registros de intensa atividade até meados de março de 1964, foi o da reforma agrária, compreendida em diversos pronunciamentos como um pretexto para se alterar a Constituição e o direito de propriedade, considerado a base do regime representativo. A grande maioria dos pronunciamentos veiculados pela Rede da Democracia associou o projeto de reforma agrária do governo à ameaça comunista.
A ideologia de segurança nacional
A luta anticomunista foi transformada numa questão de segurança nacional, a partir do argumento de que uma guerra revolucionária se espalhava pelo país. Isso explica a prioridade dada no campo discursivo às alianças com os militares e o apelo para que as forças armadas interviessem no Estado. Essa observação pode ser ilustrada pelo pronunciamento na Rede da Democracia do jornalista Roberto Marinho, no âmbito das homenagens aos militares mortos na Intentona Comunista, que foi a tentativa de golpe contra o governo de Getúlio Vargas realizado em novembro de 1935 pelo Partido Comunista Brasileiro. O proprietário do jornal O Globo apelou para que “as comemorações se transformassem numa demonstração de civismo, em que civis unidos aos militares ameaçados, agora também ou mais do que há 28 anos pela traição vermelha, afirmem a sua devoção à pátria em perigo”. O jornalista terminou o pronunciamento pedindo que o “povo brasileiro” “comparecesse às romarias e manifestações” em favor da liberdade e da democracia.
Ao resgatarem a tradição do pensamento liberal, os jornais da Rede da Democracia acabaram por reproduzir o papel ambíguo desse discurso na cultura política brasileira. Não só vocalizaram demandas por liberdade, mas também colocaram os militares no centro da agenda jornalística. Num cenário em que os setores conservadores demandavam respeito à lei, a imprensa carioca passou a relembrar o papel histórico dos militares. A interpretação de que as forças armadas eram o principal sustentáculo da Constituição e corriam risco de desintegração foi acompanhado pelas denúncias de politização das instituições militares a partir da infiltração comunista. Embora o apelo anticomunista não constituísse um fato novo na história do país, ele ganhou uma nova dimensão em face da Guerra Fria e do acirramento dos conflitos de classes em torno das reformas sociais.
Os representantes da imprensa carioca, devotos da economia de mercado, souberam articular as ideias liberais e autoritárias no momento de crise das instituições representativas. Os jornais da Rede da Democracia defenderam a preservação das instituições representativas liberais, mas evocaram a legitimidade da luta contra o comunismo e a necessidade de ordem interna como condição para a retomada do desenvolvimento econômico. Eles compartilharam temas abordados pela ideologia de segurança nacional desenvolvida pela Escola Superior de Guerra, que preconizava um papel interventor para os militares na sociedade brasileira.
Aloysio Castelo de Carvalho / Observatório da Imprensa
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