O brasileiro comum domina e aprecia as telenovelas. Não por acaso,
foi esta a linguagem escolhida para a narrativa do julgamento do
“mensalão”. Há herói e vilão, protagonistas e coadjuvantes. O processo
foi fatiado em “capítulos”. Os réus, agrupados em “núcleos”. Agora, os
roteiristas discutem o capítulo final: prisão imediata dos condenados
sob suspeita de acordarem asilo político com governos de esquerda ou a
dilatação do espetáculo até às vésperas das eleições presidenciais de
2014. Mas há uma audiência não passiva que também quer emplacar o seu: a
anulação do processo na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Se há uma linguagem que o brasileiro comum domina e aprecia é a da
telenovela. Farta literatura acadêmica aponta a popularidade do
principal produto cultural de exportação brasileiro como a razão que lhe
confere alta efetividade na construção de consensos hegemônicos. Há
exemplos consagrados de produções que inovaram padrões estéticos,
alteraram costumes, reforçaram estereótipos e interferiram no
comportamento político da nação. Não por acaso, foi justamente o formato
de telenovela o escolhido para dar corpo ao julgamento da ação penal
470, o “mensalão”, que invade os lares dos brasileiros há quase quatro
meses, televisionado pela TV Justiça e reverberado em edições do estilo
“melhores momentos” pelo noticiário.
Antes mesmo de o julgamento ter início, os jornais já apresentavam a
sinopse do enredo, a descrição dos personagens. Herói e vilão foram
previamente fixados no imaginário coletivo, assim como quem seriam os
protagonistas e os coadjuvantes do elenco escalado. A nomenclatura
adotada não deixou nada a dever aos conhecidos roteiros da
teledramaturgia. O processo foi fatiado em “capítulos”. Os réus,
agrupados em “núcleos”. Tudo ao melhor estilo “padrão globo de
qualidade”.
Embora os resumos dos capítulos estivessem antecipados, diariamente, nos
jornalões, a direção geral, assinada pelo relator do processo, Joaquim
Barbosa, não economizou em inovar as estratégias para surpreender o
público. Com o apoio da maioria dos ministros que se produz diariamente
para enfrentar os holofotes, negou a 34 réus o direito constitucional à
dupla jurisdição. Inverteu a ordem dos capítulos sugerida no roteiro
prévio feito pelo Ministério Público. E a alterou, novamente, quando a
audiência dava sinais de cansaço, no atropelado processo de fixação das
penas.
Fez merchandising de teoria jurídica estrangeira que até então ainda não
havia assegurado espaço no mercado judiciário brasileiro. E o pior: com
uma releitura tão tacanha que “obrigou” o alemão Claus Roxin, autor da
obra original, a vir ao Brasil desautorizar seu uso indevido. Reagiu
rápido e mudou o foco da polêmica ao apenar os protagonistas antes que o
enredo desandasse de vez. Atropelou garantias individuais consagradas
para manter o cronograma que, como tantas outras novelas globais já o
fizeram, intencionava influir nas eleições.
Também enfrentou sérios percalços. Apelou para uma possível militância
nas redes sociais para explicar o cenário deserto no entorno do STF, com
seguranças trajados ao estilo hollywoodiano sem encontrar o que fazer.
Protagonizou embates acirrados quando o ministro-revisor, Ricardo
Lewandowski, mesmo isolado no papel de vilão, escancarava as
irregularidades do processo. O golpe mais duro, sem sombra de dúvidas,
foi não poder gravar a cena dos réus protagonistas, algemados, sendo
conduzidos à prisão, a tempo de influenciar o resultado das urnas do pleito municipal deste ano. E os resultados do pleito, obviamente, fugiram ao script.
Mas, como ensinam os grandes dramaturgos, a telenovela é uma obra
aberta, que interage com as demandas do mercado. O roteiro, sempre que
necessário, sofre alterações. E como em qualquer dramalhão que se preze,
há várias versões se desenhando para o esperado “capítulo final”.
Boatos alardeados pela imprensa de que o ex-ministro alçado ao papel de
chefe da quadrilha criminosa já estaria com asilo político acertado em
Cuba ou na Venezuela justificariam novo pedido do Ministério Público para a prisão preventiva dele e de outros condenados.
Mas a direção-geral do também protagonista e herói Joaquim Barbosa
parece apontar para outro caminho: estender o espetáculo até as vésperas
das eleições presidenciais de 2014, quando o grand finale
poderia tomar proporções ainda mais épicas. Com a temporada de posses do
STF, o longo recesso do judiciário e os prazos regimentais para
publicação do acórdão e ingressos de embargos, é perfeitamente viável. A
elasticidade do prazo dá brecha também para novas tentativas de se
incluir no elenco um velho e querido personagem do público, que muito
incomoda os patrocinadores do espetáculo: o ex-presidente Lula, o
favorito nas pesquisas para a eleição presidencial de 2014.
Mas há também uma terceira possibilidade, idealizada não pelos
roteiristas, mas por aquela parcela da opinião pública que, ao contrário
do que apregoava Adorno, no clássico Indústria Cultural, não assiste
passiva à manipulação da audiência. Juristas e intelectuais brasileiros,
apoiados por parte do público, já estão preparando uma ação à Corte
Interamericana de Direitos Humanos para pedir a anulação do julgamento,
marcado desde seu primeiro briefing por diversas irregularidades.
Os argumentos, certamente, não contemplam os amantes da
teledramaturgia. Mas encontram bases sólidas na Constituição brasileira e
nos tratados internacionais que versam sobre liberdades individuais e
garantias fundamentais do estado democrático de direito.
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