quarta-feira, 29 de abril de 2009

Sonhos devastados pela ditabranda


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Meses atrás assisti um filme muito bonito, chamado Apenas um Sonho (Revolutionary Road, o título original, como sempre é magistralmente distinto da tradução para o portuguès), com Leonardo DiCaprio e Kate Winslet. A história me lembrou a ditabranda (quem não souber do que estou falando, entre aqui). Explico. A personagem principal percebe que sua [...]undefinedexistência é vazia. O marido, DiCaprio, é um executivo de uma empresa sem grandes ambições a não ser trabalhar o menos possível e curtir a vida. Mas é um homem criativo, inteligente, divertido e, claro, atraente (estamos falando do horroroso DiCaprio). Sua esposa, Kate, continua perdidamente apaixonada pelo marido. O personagem de DiCaprio engabela o tédio, a empresa, a vida e, por fim, a própria mulher. Seduz secretárias, falta ao trabalho, atrasa relatórios. É feliz e irresponsável. Sua mulher, no entanto, presa à rotina doméstica, não tem tanta sorte. A vida no subúrbio de uma cidade americana lhe oprime cada vez mais. Sabendo que o marido odiava seu emprego, e que ela própria começava a odiar sua vida, faz uma proposta ousada ao companheiro: vender tudo que possuíam e ir morar em Paris. Ela trabalharia como secretária da ONU e ele, bem, ele poderia não fazer nada por uns tempos, ler livros por exemplo, e decidir o que ele realmente queria da vida. Ela acredita no marido, acha que não lhe faltam inteligência e originalidade para alcançar uma existência mais plena.Inicialmente refratário à idéia, ele acaba aceitando. E os dois vivem o prelúdio de um delicioso sonho. A vida de Kate agora tem um sentido. Ele também se sente mais forte e independente. Mas eles precisavam ainda resolver algumas coisas. Mudanças assim não se realizam do dia para noite. Ele volta ao trabalho. Conta aos colegas sobre seus planos. Passa a esnobar ainda mais solenemente seus chefes, até o ponto de ditar um relatório muito doido.Ironia das ironias. O tal relatório muito doido chama a atenção de um dos chefões, positivamente! Ele se encanta com o estilo livre e agressivo do texto. Convoca aquele estranho empregado para conversar e se fascina com a irreverência, humor e agilidade mental do rapaz, e lhe propõe uma belíssima promoção, com direito à participação nos lucros e tudo. O novo negócio da empresa era uma atividade ainda incipiente, computadores. DiCaprio pede tempo para pensar. A recusa, inconcebível para qualquer outro funcionário, desperta no chefe um desejo ainda maior de convencer aquele funcionário "original" a aceitar a oferta. O chefe pensa que DiCaprio recebeu proposta de outra empresa; é a única explicação para que ele receba a oferta de forma tão altiva. Nunca imaginaria que o plano de DiCaprio é vagabundear em Paris, e ser sustentado, pelo menos inicialmente, pela esposa. Um dia, na praia com um casal de amigos, DiCaprio revela seu dilema. A esposa, que não sabia da oferta, escuta-a perplexa. Seu sonho, tão cálido, tão desesperado, de fugir à tediosa vida burguesa americana, parece escorrer pelo ralo, levando junto sua vida. A leitura deste filme é complexa. De certa forma, a esposa vive uma utopia extravagante. A proposta de ir à Paris constrange todos, os amigos do casal, os colegas de trabalho, e inclusive a nós, espectadores. É uma afronta. Como renunciar a um bom emprego para viver um sonho incerto? É o tipo de coisa que não se faz! Simplesmente não se faz! Apenas os ricaços podem fazê-lo! Pobres e classe média, não! No começo do filme, quando eles se conhecem, DiCaprio, um jovem inteligente e engraçado, com boa instrução, trabalhava na estiva. O emprego na seguradora, onde seu pai trabalhara por toda a vida, era um grande avanço. Ganhava bem e vivia numa confortável casa numa bela e pacata rua de subúrbio, a Revolutionary Road. A personagem de Kate Winslet era uma atriz fracassada; mas continuava sendo uma linda mulher, cujo charme, cultura e inteligência sobressaíam no universo medíocre em que eles viviam. E ainda tinha sonhos. No fundo, todos sentem inveja do sonho de Kate Winslet; a cena em que eles falam de sua intenção a seus amigos mais próximos mostra bem isso. Sua idéia, de vender tudo e ir morar em Paris, era uma idéia por demais excêntrica! Era arriscado, louco, e mesmo assim, uma idéia magnífica! Ela vai à uma agência e assegura o emprego de secretária da ONU. Ganharia um bom salário, suficiente para sustentar o casal. Eles eram jovens, aventurosos, bonitos, inteligentes, e saberiam enfrentar as dificuldades que topariam no caminho. DiCaprio, um jovem extremamente ágil e esperto, logo encontraria o que fazer. DiCaprio, no entanto, dá para trás. A proposta da empresa era irrecusável. Ganharia muito dinheiro. E, afinal, ele não era um artista. Sua mulher o idealizava, como se ele fosse um novo Henry Miller, que só precisasse de tempo, paz e a sombra da Torre Eiffel, para escrever romances que abalariam os alicerces da literatura moderna. Ele não escrevia, não compunha músicas. Era um homem interessante, só. Divertido, simpático, inteligente, muito bonito, e só. Talvez ganhasse dinheiro e ficasse rico. A maioria absoluta das mulheres se contentaria com isso; mas não a personagem de Kate Winslet. Sua esposa fica mais do que arrasada. Havia depositado todas as suas esperanças naquele sonho tão grandioso, tão lindo. Ah, ia esquecendo. Um derradeiro fator surge para enterrar de vez a utopia. Ela fica grávida intempestivamente. Todas aquelas semanas de excitação com a perspectiva de mudar de vida decerto intensificaram o desejo, e estamos nos anos 50, ainda não há formas seguras e práticas de se prevenir. Desesperada, ainda propõe ao marido que lhe permita fazer um aborto. Ele rechaça a idéia veementemente. O sonho naufraga nos escolhos da realidade. O final, que não revelarei, é bem triste. Por que, então, lembrei da ditabranda da Folha de São Paulo? Porque esse tipo de coisa nunca é computado na balança da história. Os editores da Folha, quando avaliam a gravidade da ditadura militar, não olham nunca para os sonhos destruídos de milhões de brasileiros. Para o sonho destruído de toda uma nação! As décadas de 60 e 70, em todo o mundo desenvolvido, foram anos de entusiasmo, glória, aventuras, arte, revolução, e sobretudo muita liberdade e muita democracia. O Brasil não pôde viver esse momento. Enquanto os EUA e Europa viveram anos de juventude, amor, revolução sexual, engajamento político e tomada de consciência, o Brasil viveu um período de retrocesso democrático e miséria intelectual. Esses ditadorzinhos midiáticos nunca perceberão isso. Nos anos 60, os sonhos eram grandes. Havia esperanças de se levar educação pública de qualidade para toda a população brasileira, de se reduzir a miséria e a desigualdade social. Possivelmente muitos desses sonhos encontrariam tremendas dificuldades. Mas era preciso tentar! Quantos milhões de brasileiros não poderiam ter nascido em melhores condições se não houvesse existido a ditadura? Quantos milhões de crianças não teriam deixado de morrer precocemente não fosse o desprezo pelo social manifestado pelo regime militar?Há pouco tempo, assisti no youtube a um dos programas sobre a ditabranda feitos pela Record. Emocionei-me muito com a entrevista com mulheres que foram torturadas pela ditadura, e que afirmaram terem sido torturadas mais uma vez agora, com essa história de ditabranda. Senti uma indignação muito grande. Mas também um poderoso sentimento de solidariedade para com elas. E também experimentei um forte sentimento de fraternidade para com todos que participaram do ato contra a Folha, realizado há poucas semanas na Barão de Limeira. O homem é um animal político, dizia Aristóteles, e eu acrescentaria que também é um animal que sonha, e que esses sonhos são tão importantes quando tudo o mais, tão importantes quanto o desenvolvimento econômico, a estabilidade no emprego. Uma pessoa que parou de sonhar é uma pessoa semi-morta, um zumbi. A ditadura militar brasileira, e seus congêneres em toda a América Latina, portanto, representou um golpe terrível, uma descida aos infernos mais sombrios da existência de um povo, e é muito revoltante que aqueles que se presumem fazer parte da "elite intelectual" desdenhem de um fato tão absolutamente insofismável; e mais, que finjam não saber que sua atitude significa um ataque abjeto e covarde a brasileiros a quem a ditadura inflingiu sofrimentos desumanos; sejam os que, por sua condição social e cultura, têm consciência disso, sejam os milhões que, justamente por culpa da ditadura, não adquiriram consciência política de sua condição de vítimas históricas.Flaubert dizia que era necessário muita melancolia para entender a destruição de Cartago, uma das mais belas cidades da Antiguidade. Homero sabia disso, quando descreveu tão soberbamente a tomada de Tróia, onde os adversários dos gregos são tratados com veneração similar à dispensada aos grandes heróis do exército de Agamemnon. Walter Benjamin explica que o entendimento da história requer imaginação, que é muito distinta de fantasia. Para apreender, portanto, o sentido dramático da ditadura brasileira, não se deve ater apenas a estatísticas; urge um olhar humanista, universal, atento às desgraças particulares e aos danos nacionais; que leve em consideração, sobretudo, as consequências; que avalie a extensão das cicatrizes. Só assim teremos uma apreciação aproximadamente justa do significado do golpe militar; e estou convicto de que uma análise honesta e criteriosa resultará numa conclusão bem diferente daquela manifestada nos editoriais da Folha de São Paulo.
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# Escrito por Miguel do Rosário # Segunda-feira, Abril 27, 2009 9 comentarios # Etichette: ,

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