sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Le Monde pergunta se o Brasil está disposto a assumir seu passado

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Le Monde pergunta se o Brasil está disposto a assumir seu passado

O jornal Le Monde levou a discussão que se formou no Brasil sobre o Plano Nacional de Direitos Humanos para as suas páginas. Em matéria intitulada "No Brasil, a memória dos anos de chumbo volta à cena poltica", o periódico ressaltou que o país é a única nação submetida a uma ditadura na América Latina que não passou por um ajuste de contas.

O Le Monde conclui seu texto dizendo que a evolução dos debates em torno das polêmicas levantadas pelo Plano - em especial no que diz respeito ao esclarecimento dos crimes cometidos durante a ditadura militar -, num ano eleitoral, vai mostrar se o Brasil está disposto ou não a olhar para o seu próprio passado para reforçar sua democracia.

A matéria do Le Monde foi publicada nesta quarta-feira (13), antes de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinar um novo decreto alterando parte do texto de criação do Plano Nacional de Direitos Humanos (leia sobre isso aqui). Com a alteração, o presidente chegou a um acordo entre militares e a área de direitos humanos, que divergiam sobre o documento. Veja abaixo o texto do jornal francês:

No Brasil, a memória dos anos de chumbo volta ao centro do palco

Os anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985) estão de volta à lembrança dos brasileiros. 25 anos depois da volta da democracia, a vontade do governo de lançar luz sobre os crimes cometidos pelos agentes do Estado divide a coalizão de centro esquerda no poder e provoca tensão sem precedentes entre o presidente Luiz Inacio Lula da Silva e os chefes militares.

A crise começou com a assinatura, dia 21/12/2009, pelo chefe de Estado, de um decreto que lançou o III Programa Nacional dos Direitos Humanos. Esse texto preconiza a adoção de uma longa lista de cerca de 500 medidas e a aprovação de 27 novas leis aplicáveis a vários campos. O Programa terá de ser apresentado ao Congresso, o mais tardar, em abril de 2010.

O documento contém duas diretivas consideradas inaceitáveis pelos militares, pelo menos nos termos em que estão formuladas: a criação de uma Comissão da Verdade, encarregada de examinar os crimes perpetrados “no contexto da repressão política”, inovação, segundo os militares, “excessivamente insultante, agressiva e revanchista”; e dos textos contrários aos direitos humanos adotados entre 1964 e 1985 e que permanecem vigentes.

A expressão “repressão política”, diz o exército, significa que só os atos cometidos pelas forças da ordem serão objeto dessa operação verdade. Os militares propõem que a expressão seja trocada por “conflito político”, o que permitiria examinar também os atos praticados por militantes da extrema esquerda que escolheram a via da ação direta, em luta armada. Entre os militantes ativistas dos anos de chumbo está, por exemplo, a ministra Dilma Rousseff, pré-candidata indicada pelo presidente Lula para disputar a sucessão em outubro.

Quanto à anulação de alguns textos legais, o exército suspeita que o projeto vise prioritariamente à Lei da Anistia votada em agosto de 1979. Lembram que a Constituição de 1988 consagrou a anistia; e que revisar essa lei, ainda que parcialmente, e retroativamente, seria ilegal.

Para bem marcar sua determinação, os chefes das três armas ameaçaram renunciar em bloco, em fins de dezembro, gesto que foi seguido pelo ministro da Defesa Nelson Jobim. O presidente Lula, que não conhecia detalhes dos textos, prometeu aos militares que os textos seriam alterados. De volta das férias, na 2ª-feira, 11/1, o presidente proibiu os ministros de voltarem a se manifestar sobre o assunto. Para o chefe de Estado, o destino da Lei de Anistia deve ser analisado pela Justiça, não pelo Executivo. A Corte Suprema, que recebeu processo encaminhado pela Ordem dos Advogados do Brasil, deverá decidir sobre se as torturas podem ou não ser anistiadas.

Enquanto espera, o presidente deverá operar uma difícil arbitragem entre o Exército, que o presidente sempre cuidou de manter em paz, e Paulo Vannuchi, ministro encarregado da Secretaria dos Direitos Humanos (SEDH), seu amigo de 30 anos. Vannuchi também ameaçou demitir-se, caso o programa em que sua secretaria trabalhou for desfigurado, para satisfazer exigências do exército, e for convertido em “mostrengo político”. “É possível fazer ajustes”, disse Vannuchi, “mas dentro de certos limites”.

O caso chama a atenção para a exceção brasileira, único país latino-americano pós-ditadorial que não levou a julgamento os governantes da ditadura. A lei de 1979 deu cobertura aos militares, aos policiais e aos militantes engajados na luta armada; permitiu a libertação dos últimos prisioneiros políticos e o retorno de milhares de exilados.

Ao anistiar todos os que cometeram, entre 1961 e 1979, “crimes políticos e conexos”, a lei beneficiou simultaneamente perseguidores e perseguidos, prisioneiros torturados e carcereiros torturadores. E permitiu que esses últimos escapassem de qualquer julgamento. Votada seis anos antes do fim da ditadura, para grande satisfação da oposição que, à época, recebeu-a como uma vitória, a Lei da Anistia foi vista, então, como primeiro ato da volta à democracia. Depois, nunca mais o país chegou a realmente discutir as sequelas daquele período.

Na Argentina e no Chile, países nos quais as ditaduras foram, sim, mais ferozes, governos posteriores consideraram ilegítimas, em nome da justiça, as anistias decididas pelos militares, consideradas “autoanistias”. Na Argentina, onde a lei foi abolida, os militares autores de crimes foram julgados e condenados. No Chile, a lei sobreviveu, mas os criminosos também tiveram de comparecer ante os tribunais.

No Brasil, cerca de 400 opositores à ditadura foram mortos ou continuam desaparecidos. As famílias, para as quais esse passado “não passa”, exigem que se faça luz sobre esses dramas, em nome do direito à verdade histórica. Exigem que se abram os arquivos militares. O exército resiste, afirmando que aqueles arquivos foram perdidos ou queimados. As famílias protestam, acusando o presidente Lula de jamais se ter dignado a recebê-las. O protesto das famílias encontra eco cada vez maior.

O modo como evoluirá esse caso, nesse ano eleitoral crucialmente importante para o poder, mostrará se o Brasil está pronto para encarar o próprio passado para fortalecer ainda mais a própria democracia.

Fonte: Le Monde

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