Recebo
outra carta da ravissante Dora Avante. Dorinha, como se sabe, até hoje
só perdeu um carnaval. Foi quando morou um ano no exterior com um
milionário cujo titulo ela não se lembra (“Duque, Sultão... Sei que era
nome de cachorro”) . O romance durou pouco porque ele tinha lhe jurado
que era do “jet set” mas se revelou um teco-teco na cama.
Até
hoje Dorinha só se refere a ele como “Le Blef”. Fora este interregno
impensado, Dorinha nunca deixou de desfilar no carnaval.
Inclusive
com sacrifícios pessoais, como na vez em que saiu como destaque num
pedestal tão alto que ficou presa na rede elétrica e foi salva por um
bombeiro chamado Eudir, com quem ela não tem certeza mas acha que se
casou depois.
Ficou famosa a sua
passagem triunfal na avenida como rainha da bateria, só de tapa sexo e
puxando o Pitanguy pela mão, para o caso de o publico começar a gritar
“O autor! O autor!” .
Por tudo
isto, pode se compreender seu desalento com a possibilidade de não
desfilar este ano. Sim, ela e seu grupo de pressão política e carteado,
as Socialaites Socialistas, estão ameaçados de serem cortados do desfile
da sua escola, porque...
Mas
deixemos que a própria Dorinha nos conte. Sua carta veio, como
sempre,escrita com tinta púrpura em papel rosa e com aroma de
“Sacanage”, um perfume recém-lançado e já banido em vários países.
“Queridíssimo.
Beijos tristes e babados. Agora esta: estão preocupados com a
quantidade de brancos nas escolas de samba e a solução, na nossa escola,
foi adotarem um sistema de cotas! Parece que se deram conta da
gravidade da situação quando descobriram que justamente este ano, quando
o tema da escola é “Esplendor de um rei Nagô”, a porta-bandeira será
canadense e o mestre-sala dinamarquês, e os dois aprenderam a evolução
por correspondência.
Concluíram
que se não fosse tomada uma resolução drástica agora em breve teríamos
baterias formadas só de alemães. Como o ritmo dos desfiles fica cada vez
mais marcial, nesse quesito os alemães não seriam problema. Problema
seria eles não pararem na praça da Apoteose, seguirem adiante e
invadirem a Polônia.
Concordamos
que alguma coisa deve ser feita, mas o fato é que as cotas para brancos
já foram todas preenchidas por um grupo ucraniano e não sobrou nada para
as Socialaites Socialistas, vítimas de odiosa discriminação.
Pensamos
em muitas maneiras de contornar a situação, todas envolvendo algum tipo
de escurecimento rápido da pele, culminando com a decisão da Tatiana
(“Tati”) Bitati de mergulhar em tinta nanquim. Mas temos pouco tempo. E o
impensável talvez aconteça.
Este
ano, a avenida pode não ver Dora Avante. Domage. Estou com seios novos,
ainda não testados em público. Assim passam as glórias, e as doras,
deste mundo. Beijíssimo da tua Dorinha.”
Luís Fernando Veríssimo
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