No interminável julgamento do “mensalão”, as cartas dos leitores e os
blogs vociferavam: a reputação dos ministros do Supremo está em jogo.
Minha inteligência se esbate em suas limitações para compreender o que
pretendiam dizer tais sábios da jurisprudência. Imagino que suas
elucubrações buscassem definir o resultado do julgamento à revelia do
contraditório e do excurso argumentativo.
Isso permite concluir que, nos julgamentos de grande repercussão na
opinião pública, devemos nos livrar das conquistas históricas do
liberalismo político e da democracia que garantem ao cidadão, rico ou
pobre, o julgamento fundado na argumentação racional das partes e na
livre formação da convicção do juiz ao aplicar a lei ao fato.
É de uma obviedade palmar que os crimes alegados pela acusação, uma vez
provados, devem ser duramente punidos, sobretudo por desmoralizarem os
requerimentos de probidade que devem guiar a administração pública.
Mais que isso, deformam a representação popular. No banco dos réus do
“mensalão” e do “mensalinho” deveriam estar sentados o sistema
partidário e o financiamento das campanhas eleitorais, engendrados com o
propósito de transformar a política num mercado de balcão, onde os
gritos de “compro” e “vendo” tornam ridícula a hipocrisia dos discursos
moralistas.
O desempenho nas eleições, o sucesso das políticas sociais e o
reconhecimento popular não absolvem o Partido dos Trabalhadores dos
pecados da Realpolitik e dos empréstimos contraídos em bancos de espertezas e hipocrisias do establishment
nativo. Não há outro caminho senão purgar as culpas e retomar a luta
pelo avanço da igualdade e da democracia dos cidadãos, o que inclui a
defesa da diversidade de pontos de vista e dos meios para expressá-los.
Na sociedade dos significados invertidos e pervertidos cabe às
associações de cidadãos lutarem pela fiscalização infatigável dos
poderes públicos e privados, sobretudo daqueles que pretendem se embuçar
com as máscaras de senhores da liberdade. Imagino que assim podemos
vislumbrar a derrota do transformismo que dá sobrevida ao pacto
oligárquico que assola o País. Os senhores abandonaram os coturnos e as
baionetas para recorrer aos métodos sutis e eficientes de tortura
coletiva dos cidadãos com as técnicas da desinformação, do massacre
ideológico e da “espetacularização” da política.
Hannah Arendt, nas Origens do Totalitarismo, abordou as
metamorfoses sociais e políticas na era do capitalismo tardio e da
sociedade de massa. As transformações das sociedades ao longo do século
XX produziram, em simultâneo, o declínio do homem público e a ascensão
do “homem massa, cuja principal característica não é a brutalidade nem a
rudeza, mas o seu isolamento e sua falta de relações sociais normais”.
Trata-se da abolição do sentimento de pertinência a uma classe social
sem a supressão das relações de dominação. “As massas surgiram dos
fragmentos da sociedade atomizada, cuja estrutura competitiva e
concomitante solidão do indivíduo eram controladas quando se pertencia a
uma classe.” Em seus piores momentos, os porta-vozes do indivíduo
abandonado às penúrias da multidão solitária se entregam às tropelias do
que Antonio Gramsci chamou de sarcasmo de “direita”. Sempre negativo,
esse sarcasmo é cético e destruidor não só da forma, mas do conteúdo
humano dos sentimentos e crenças na justiça, na igualdade e na
fraternidade, elementos ideológicos difundidos pelas tendências
democráticas herdadas da Revolução Francesa (Antonio Gramsci, em Maquiavel, a Política e o Estado Moderno).
Invocar a justiça acima da lei é atitude típica do “homem cordial”,
figura magnífica da sociologia de Sérgio Buarque de Holanda. Ao
contrário do que pretendem as interpretações vulgares, o homem cordial
de Sérgio Buarque não é o homem liberal da Teoria dos Sentimentos Morais,
de Adam Smith, cuja “mente estava dotada naturalmente da faculdade que
permitia distinguir, em certas ações e afeições, as qualidades do
certo, do louvável e do virtuoso, e, em outras, aquelas do errado, do
condenável e do vicioso”.
O homem cordial é avesso à impessoalidade da norma e está
permanentemente empenhado em impor suas “virtudes” e sua “moral”
particularista aos demais. Trata-se da caracterização mais perfeita do
“coronel”, personagem das oligarquias que infestaram e ainda infestam o
País com seus diktats. Outrora concentrados nos grotões do
Brasil varonil, hoje se refugiam nas redações ou espalham seus
mandonismos e grosserias pela web.
Luiz Gonzaga BelluzzoNo CartaCapital
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