(Brenda Starr, repórter da HQ de Dale Messick) |
No final de 1997, após minha aventura espanhola – economizei um
dinheirinho e fui estudar Literatura Espanhola e Hispanoamericana em
Madri –, voltei ao Brasil para morar em São Paulo. Desempregada, fui
convidada por uma grande amiga a fazer um frila para a revista Marie
Claire, onde ela era editora: uma entrevista com o pré-candidato a
presidente Ciro Gomes que acabou sendo um dos mais marcantes trabalhos
da minha carreira. Ciro abriu a alma, talvez mais do que gostaria, e a
matéria de uma revista feminina surpreendentemente repercutiu em todos
os jornais.
O sucesso foi tão grande que aquela entrevista, publicada na edição
de janeiro do ano seguinte, foi a responsável por minha reinserção no
mercado brasileiro após dois anos fora. Fui sondada por alguns veículos e
acabei sendo convidada para voltar à Folha de S.Paulo, onde havia
trabalhado na sucursal de Brasília, para ocupar uma vaga na editoria de
Cotidiano. Meses depois, mudei para a Ilustrada, que almejava quando fui
para a Espanha. (Qualquer hora tiro um tempinho para digitar a
entrevista com o Ciro e postar aqui para vocês. É muito divertida.)
Sete anos mais tarde, em maio de 2004, eu estava havia apenas três
meses trabalhando no Estadão quando a mesma querida amiga me procurou
para fazer um convite: iria assumir a editoria de Brasil da revista Veja
e queria que eu fosse para lá fazer coisas bacanas, reportagens
especiais, entrevistas. “Quem você gostaria de entrevistar?”, ela
perguntou. Respondi que sempre quis entrevistar Diego Maradona sobre
política. Até hoje acho que seria uma entrevista e tanto. Ela ficou
entusiasmada e eu também. Mas e hard news?, perguntei. Este nunca foi
meu forte. “Ah, você vai ter que fazer, mas ocasionalmente”. Pensei uns
dias e topei. Lembro que até comprei, num sebo de São Paulo, um livro de
Oriana Falacci, a grande entrevistadora italiana, para me inspirar…
Costumo dizer que existem dois tipos de repórteres: os que têm boas
fontes e apuram muito, mas têm um texto apenas razoável, e os que não
têm tantas fontes nem são incríveis apuradores, mas escrevem bem. Eu não
tenho fonte nenhuma e apuro o suficiente; o texto é o diferencial.
Portanto, o primeiro choque para mim após a estreia na Veja foi que a
alentada matéria de capa sobre corrupção
que eu e dois colegas apuramos não foi escrita por nós. Eu escrevi o
texto inteirinho. E ele foi inteirinho modificado para publicação.
Obviamente não recebi aquilo de bom grado, mas uma colega que estava lá
há mais tempo me acalmou dizendo que logo eu “pegaria o jeito” para
escrever no estilo da revista e não mexeriam tanto no texto.
Bom, hoje sei que nunca iria “pegar o jeito” de escrever da Veja
porque, para começo de conversa, não é o meu. Meus textos em geral têm
bastante aspas, adoro colocar frases boas de entrevistados e
especialistas para dar um colorido. Na Veja, podem reparar, os textos
quase não têm aspas, é tudo assumido pelo redator. Além disso, tem uns
clichês do tipo “os números impressionam” que eu não conseguiria incluir
num texto meu nem que trabalhasse lá durante 100 anos.
Vi, de cara, que tinha entrado numa enrascada, que só piorou quando
me destacaram para cobrir a campanha de Marta Suplicy à reeleição em São
Paulo. Não havia ninguém no PT que aceitasse falar com a Veja. As
fontes das reportagens tinham que ser pessoas, mesmo dentro do partido,
de oposição à prefeita. Eu fazia a apuração possível, mas absolutamente
nenhum daqueles textos foi escrito por mim. Àquela altura, eu só pensava
num jeito de sair da Veja sem ficar desempregada – afinal, eu acabara de
entrar no Estadão quando decidi ir para lá. E tinha um filho para
criar, não sou nenhuma filhinha-de-papai para me dar ao luxo de ficar sem trabalhar.
Para driblar as dificuldades, minha amiga e chefe escalou outra
repórter para trabalhar em parceria comigo: eu fazia a apuração pelo
lado petista a partir de uma pauta sugerida por mim e ela redigia o
texto e apurava o lado do PSDB, incluindo os obrigatórios elogios ao
tucanato, como na reportagem dos políticos “picolés de chuchu”.
Quem acompanha meu trabalho há mais tempo sabe que essa é uma pauta
tipicamente minha, para tirar sarro de políticos. Foi transformada por
Veja em uma peça de bajulação a Geraldo Alckmin – reparem que a
reportagem em questão é assinada em dupla com outra pessoa, assim como
várias outras do meu curto período na revista.
Algumas alterações foram menos dramáticas: o perfil do advogado Kakay,
apesar de nenhuma frase do texto ter sido escrita por mim, pelo menos
manteve-se fiel ao que apurei, não tem nada do que me envergonhe ali. A
hilária história do “embargo auricular” foi descoberta minha, e já foi
citada em vários perfis dele depois. Mas o único texto integralmente
meu, desde o título, é a ótima entrevista que fiz com a namorada do
senador Eduardo Suplicy, Mônica Dallari.
Um furo. Sou, antes de tudo, uma repórter. E minha maior especialidade
(é a segunda vez que volto a elas neste texto) sempre foram as
entrevistas. Tenho um belo portfólio, modéstia à parte: escritores,
políticos, atletas, cineastas.
Em revista, mais do que em jornal, pode acontecer de o redator-chefe
modificar um pouco seu texto, isso não é incomum. Mas o difícil de
tolerar em Veja, para mim, além de eles mexerem no texto todo, eram as
torcidas de raciocínio. Certa vez, fui convocada a colaborar em uma
reportagem sobre educação e me pediram alguém para falar sobre cotas.
Lembrei de um antigo colega da faculdade que era do movimento negro,
liguei para ele e peguei uma frase favorável às cotas. Qual não foi a
minha surpresa quando a autora do texto simplesmente transformou a frase
dele em contrária às cotas! Fiquei furiosa e felizmente, neste caso,
consegui reverter. Mas o pior estava por vir.
Quando as discussões com minha chefe começaram a desandar em gritaria
na redação, decidi que estava na hora de sair. Escrevi um e-mail para
ela dizendo que preferia manter sua amizade e me demiti da revista. Ela
aceitou, me pediu um mês para arranjar outra pessoa e saiu de férias.
Neste meio tempo, me pediram uma matéria sobre as dívidas que Marta
Suplicy deixaria a seu sucessor na prefeitura de São Paulo, que não eram
mesmo coisa pequena. Mas no texto aconteceu algo pelo qual nunca passei
em mais de 20 anos de carreira: foi incluída uma frase, entre aspas,
que não apurei.
Em 14 anos de Folha de S.Paulo, entre indas e vindas, como repórter
fixa ou colaboradora, jamais modificaram um texto meu desta maneira. Em
seis anos de CartaCapital, muito menos. Em nenhum lugar onde trabalhei
aconteceu algo nem sequer parecido. Está lá a frase, no primeiro
parágrafo da matéria:
“Parece a madrasta de Cinderela”. Não sei quem disse isto. Eu não a
ouvi de ninguém, mesmo porque não tenho ascendência italiana nem conheço
ninguém em Roma. Quando minha chefe chegou de férias, me encontrou
arrasada. Tenho certeza que, se ela estivesse ali, a frase não teria
aparecido magicamente no texto. Detalhe: não me importaria de fazer uma
reportagem crítica ao PT ou a quem quer que fosse, desde que eu a
tivesse escrito – e que fosse verdade. Isso se chama profissionalismo.
Felizmente, almas boas me ajudaram a sair da Veja logo depois das
férias coletivas de final de ano, e em fevereiro eu começaria na revista
VIP, onde já havia atuado como colunista, no ano anterior. Passei dois
anos e meio na VIP, de onde não tenho nenhuma queixa, pelo contrário.
Voltei a ter a coluna, fiz matérias engraçadas e algumas entrevistas
bobas com bonitonas da capa, mas também com pessoas interessantíssimas,
como o cineasta Hector Babenco, o jogador Zico e o produtor musical
Nelson Motta, entre outras. (Com o tempo, postarei elas aqui, na seção
vintage do blog.) Ironia: enquanto na Veja o que escrevia era trucidado,
na VIP uma coluna minha concorreu ao prêmio Abril de 2006 como melhor texto do ano na categoria artigo.
Uma tarde, na VIP, uma das advogadas da editora Abril entrou em
contato comigo para me comunicar que Marta Suplicy estava processando a
Veja por conta daquela reportagem, e me perguntou quem foi o “jornalista
italiano” que me disse a frase. Perguntei se tinha conhecimento de que
as matérias da Veja eram mexidas depois de escritas, e ela me disse que
sim. Falei, então, que não fora eu quem apurara aquela história e não
tinha falado com jornalista italiano algum. Nunca soube o resultado do
processo.
Se você me perguntar: mas isso acontece com todos os jornalistas que
trabalham na Veja e eles aceitam, são coniventes com essa prática? Não
sei, só posso falar por mim. Não sou o tipo de jornalista que coleciona
inimigos. Coleciono amigos, essa é minha natureza. Tenho amigos em todos
os lugares em que atuei como repórter, inclusive na Veja. Posso dizer
que tem vários jornalistas excelentes na revista, por quem tenho apreço
genuíno – minha querida amiga, por exemplo. Mas desprezo o veículo onde
trabalham. Tenho razões de sobra para isso. Sinto consideração e carinho
por todas as redações por onde passei. Respeito a editora Abril. Veja,
não.
E sabem o que é pior disso tudo? Nunca entrevistei Maradona.
Cynara MenezesNo Socialista Morena
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