É difícil dizer o que mais impressiona: se a grande imprensa ter
perdido a importância que detinha até os anos 1990 – quando ainda tinha
relativa influência no cenário político -, ou a desfaçatez com que
seus jornalistas, amadurecidos no tapa na arte de reescrever a
história, sonegam dados e fatos, Rei dos instrumentos, por sua
extraordinária capacidade de reproduzir os sons orquestrais do
reacionarismo brasileiro, realizando recitais a pedidos do Instituto
Millenium, Merval Pereira personifica a figura paradigmática do teclado
da grande mídia corporativa.
Em 9/1/2013, declarou ele em sua coluna de O Globo que “a imprevidência
dos governos petistas no setor energético acabou por neutralizar as
críticas feitas à época do apagão de FHC.” O
PT tanto politizou o racionamento de energia ocorrido no Brasil em
2001 que passou a não ter direito de adotá-lo em caso de necessidade,
como pode vir a ser o caso proximamente. O problema é que a presidente
Dilma, quando ministra, garantiu que o que não ocorrerá mais no Brasil é
racionamento de energia, chamando o episódio de “barbeiragem”.
O que Merval, aquele que tanto preza a tese do “domínio do fato” quando
se trata de legitimar simulacros de julgamento no STF, faz em sua
coluna é submeter, por ação e omissão, os fatos aos desígnios dos que
promoveram o festim neoliberal no país durante oito anos. Se até o
início dos anos 1990, o Brasil dispunha de um sistema energético limpo,
renovável, barato, capaz de estocar combustível para cinco anos, apto a
transferir grandes blocos de energia do Sul para o Norte, do Nordeste
para o Sudeste, gerenciando de forma integrada bacias hidrográficas
fisicamente distantes milhares de quilômetros, a partir da fronda
tucana, tudo isso se desfez.
Ao contrário do que afirma o imortal por encomenda da família Marinho,
não só o PT tem plenas condições de continuar criticando a estratégia
político-econômica que tanto fragilizou o estado e a economia
brasileira, como podemos atribuir o termo “barbeiragem” a uma
incompreensível benevolência da presidente aos que se deixaram levar
pelo canto das sereias que habitam os mercados financeiros.
Desde o consórcio demotucano, bloquearam-se os investimentos em
expansão do setor de geração de energia. Primeiro em nome do combate à
inflação, depois apostando numa chuva de dinheiro decorrente das
privatizações e na elasticidade (real) do sistema hidrelétrico. O
descaso, é sempre bom lembrar, andou de braços dados no governo
incensado pelo prolixo colunista de O Globo.
Adílson de Oliveira e Edmar de Almeida, professores da UFRJ, em artigo
publicado no boletim Petróleo de Gás (abril de 2001) lembravam que a
capacidade instalada tinha aumentado apenas 25,3% nos últimos seis
anos, enquanto o consumo de energia elétrica cresceu 31,3%, no mesmo
período. A defasagem, decorrente de investimentos aquém da necessidade
foi, por algum tempo, suprida com o uso da água acumulada nos
reservatórios.
Ambos alertavam para a situação especialmente grave no Sudeste e
Nordeste, onde os níveis estavam abaixo de 35% da capacidade total. O
racionamento anunciado era resultado de uma política deliberada:
entregar a infraestrutura aos “agentes privados” que nunca ganharam
tanto, tão fácil e tão rápido em tão pouco tempo. Como não politizar
essa ida ao pote com tanta sede de lucro?
Como ignorar a gravidade da situação? Os reservatórios foram
imprudentemente baixados a um nível tão crítico que, como alertou à
época o professor Antônio Dias Leite, ex-ministro das Minas e Energia,
“não seria possível seu reenchimento em um ano, mesmo que chovesse
muito”.
Cortar em 20% o consumo como o governo havia decidido, além de
deteriorar a qualidade de vida da população, acarretaria a redução do
crescimento, desorganização da cadeia produtiva e desemprego. A
Fundação Getúlio Vargas (FGV) projetava que um racionamento de energia
por em 15% por seis meses para as casas e 22% para as empresas
provocaria uma perda de R$ 15 bilhões na produção de bens e serviços
além da perda de 17 mil postos de trabalho.
Onde estavam Merval, Catanhede, Noblat, Miriam Leitão e Ricardo Noblat,
entre tantos outros milicianos das redações partidarizadas? Por que
nunca questionaram o que viam? Diante da imprevidência dos banqueiros, o
governo de FHC criou o Proer, pagando a conta dessa imprevidência. Com
relação à questão energética, por que os consumidores teriam que pagar
pela incúria da gestão tucana? E, pior, pagariam duas vezes para que
as concessionárias, tal como estava nos contratos, não tivessem
prejuízos.
Por que os jornalões não contam a história toda? O motivo é simples. A
partir do momento em que optou por fazer as vezes da direita – ou até
assumir papéis e funções que caberiam aos seus partidos – a grande
imprensa passou a ter que blindar o passado. Assim como faz com Serra,
Aécio, Álvaro Dias e outros aliados/colaboradores. Frustradas, até
agora, as tentativas de ressuscitar eleitoralmente o tucanato
esfacelado, cabe às antigas oficinas de consenso exterminar o passado.
Parafraseando Shakespeare, com a pobreza típica das paráfrases, só
resta dizer: “ambivalência, teu nome é redação partidarizada”.
Gilson Caroni Filho colabora com “Quem tem medo da democracia?”, onde mantém a coluna Traço de Mestre
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