Hildegard Angel |
Venho, como cidadã, como jornalista, que há mais de 40 anos milita na
imprensa de meu país, e como vítima direta do Estado Brasileiro em seu
último período de exceção, quando me roubou três familiares, manifestar
publicamente minha indignação e sobretudo minha decepção, meu
constrangimento, meu desconforto, minha tristeza, perante o lamentável
espetáculo que nosso Supremo Tribunal Federal ofereceu ao país e ao
mundo, durante o julgamento da Ação Penal 470, apelidada de Mensalão,
que eu pessoalmente chamo de Mentirão.
Mentirão porque é mentirosa desde sua origem, já que ficou provada ser
fantasiosa a acusação do delator Roberto Jefferson de que havia um
pagamento mensal de 30 dinheiros, isto é, 30 mil reais, aos
parlamentares, para votarem os projetos do governo.
Mentira confirmada por cálculos matemáticos, que demonstraram não haver
correlação de datas entre os saques do dinheiro no caixa do Banco Rural
com as votações em plenário das reformas da Previdência e Tributária,
que aliás tiveram votação maciça dos partidos da oposição. Mentirão,
sim!
Isso me envergonhou, me entristeceu profundamente, fazendo-me baixar o
olhar a cada vez que via, no monitor de minha TV, aquele espetáculo de
capas parecendo medievais que se moviam, não com a pretendida altivez,
mas gerando, em mim, em vez de segurança, temor, consternação,
inspirando poder sem limite e até certa arrogância de alguns.
Eu, que já presenciara em tribunais de exceção, meu irmão, mesmo morto,
ser julgado como se vivo estivesse, fiquei apavorada e decepcionada com
meu país. Com este momento, que sei democrático, mas que esperava fosse
mais.
Esperava que nossa corte mais alta, composta por esses doutos homens e
mulheres de capa, detentores do Supremo poder de julgar, fosse imune à
sedução e aos fascínios que a fama midiática inspira.
Que ela fosse à prova de holofotes, aplausos, projeção, mimos e
bajulações da super-exposição no noticiário e das capas de revistas de
circulação nacional. E que fosse impermeável às pressões externas.
Daí que, interpretação minha, vimos aquele show de deduções, de
indícios, de ausências de provas, de contorcionismos jurídicos,
jurisprudências pós-modernas, criatividades inéditas nunca dantes
aplicadas serem retiradas de sob as capas e utilizadas para as
condenações.
Para isso, bastando mudar a preposição. Se ato DE ofício virasse ato DO
ofício é porque havia culpa. E o ônus da prova passou a caber a quem era
acusado e não a quem acusava. A ponto de juristas e jornalistas de
importância inquestionável classificarem o julgamento como de “exceção”.
Não digo eu, porque sou completamente desimportante, sou apenas uma
brasileira cheia de cicatrizes não curadas e permanentemente expostas.
Uma brasileira assustada, acuada, mas disposta a vir aqui, não por mim, mas por todos os meus compatriotas, e abrir meu coração.
A grande maioria dos que conheço não pensa como eu. Os que leem minhas
colunas sociais não pensam como eu. Os que eu frequento as festas também
não pensam, assim como os que frequentam as minhas festas. Mas estes
estão bem protegidos.
Importa-me os que não conheço e não me conhecem, o grande Brasil, o que
está completamente fragilizado e exposto à manipulação de uma mídia
voraz, impiedosa e que só vê seus próprios interesses. Grandes e
poderosos. E que para isso não mede limites.
Esta mídia que manipula, oprime, seduz, conduz, coopta, esta não me encanta. E é ela que manda.
Quando assisti ao julgamento da Ação Penal 470, eu, com meu passado de
atriz profissional, voltei à dramaturgia e me lembrei de obras-primas,
como a peça As feiticeiras de Salém, escrita por Arthur Miller. É uma
alegoria ao Macartismo da caça às bruxas, encetada pela direita
norte-americana contra o pensamento de esquerda.
A peça se passa no século 17, em Massachusets, e o ponto crucial é a
cena do julgamento de uma suposta feiticeira, Tituba, vivida em montagem
brasileira, no palco do Teatro Copacabana, magistralmente, por Cléa
Simões. Da cena participavam Eva Wilma, Rodolpho Mayer, Oswaldo
Loureiro, Milton Gonçalves. Era uma grande pantomima, um julgamento
fictício, em que tudo que Tituba dizia era interpretado ao contrário,
para condená-la, mesmo sem provas.
Como me lembro da peça Joana D’Arc, de Paul Claudel, no julgamento
farsesco da santa católica, que foi para a fogueira em 1431, sem provas e
apesar de todo o tempo negar, no processo conduzido pelo bispo de
Beauvais, Pierre Cauchon, que saiu do anonimato para o anonimato
retornar, deixando na História as digitais do protótipo do homem
indigno. E a História costuma se repetir.
No julgamento de meu irmão, Stuart Angel Jones, à revelia, já morto, no
Tribunal Militar, houve um momento em que ele foi descrito como de cor
parda e medindo um metro e sessenta e poucos. Minha mãe, Zuzu Angel,
vestida de luto, com um anjo pendurado no pescoço, aflita, passou um
torpedo para o então jovem advogado de defesa, Nilo Batista, assistente
do professor Heleno Fragoso, que ali ele representava. O bilhete dizia:
“Meu filho era louro, olhos verdes, e tinha mais de um metro e 80 de
altura”. Nilo o leu em voz alta, dizendo antes disso: “Vejam, senhores
juízes, esta mãe aflita quebra a incomunicabilidade deste júri e me
envia estas palavras”.
Eu era muito jovem e mais crédula e romântica do que ainda sou, mas juro
que acredito ter visto o juiz militar da Marinha se comover. Não havia
provas. Meu irmão foi absolvido. Era uma ditadura sanguinária.
Surpreende que, hoje, conquistada a tão ansiada democracia, haja
condenações por indícios dos indícios dos indícios ou coisa parecida…
Muito obrigada.
Opinião dO Cachete:
Perfeita!!!
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