"Nunca uma verdade quase absoluta dita por um ex-presidente feriu tanto a
elite brasileira. E esta verdade só não foi completa porque Lula errou
na matemática, quando concedeu 20% de julgamento técnico à Ação Penal
470
Leonardo Attuch, Brasil 257
Se você, caro leitor, ainda acredita na tese de que o julgamento da
Ação Penal 470 foi estritamente técnico, pense no caso de Simone
Vasconcelos, ex-gerente financeira de uma agência de publicidade de
Marcos Valério. Ou em Vinícius Samarane, um funcionário de segundo
escalão do Banco Rural. Esqueça, por um momento, os nomes de réus
notórios, como José Dirceu, José Genoino e Roberto Jefferson.
Tente
agora responder, com franqueza e honestidade intelectual: por que,
afinal, Simone e Vinícius estão presos, como se fossem bandidos de alta
periculosidade?
Ambos são personagens mequetrefes da engrenagem que ficou conhecida
como "mensalão". Não têm qualquer glamour, mas foram incluídos, na peça
inicial de acusação, como integrantes do núcleo financeiro da
"quadrilha". Evidentemente, nenhum deles desfruta do foro privilegiado.
No entanto, foram julgados diretamente pelo Supremo Tribunal Federal,
justamente por terem sido considerados parte de uma quadrilha, uma
organização criminosa indissociável.
Ocorre, no entanto, que o Brasil, signatário do Pacto de San José, da
Costa Rica, concede a todo e qualquer cidadão o duplo grau de
jurisdição. O que significa que ninguém pode ser condenado em definitivo
sem, ao menos, uma possibilidade de recurso a uma instância superior.
Isso vale para assassinos, traficantes, estupradores, pedófilos,
terroristas e políticos procurados pela Interpol, como Paulo Maluf, mas
não valeu para Simone e Vinícius, assim como para vários outros réus.
Qual é a explicação? Ah, eles faziam parte de uma "quadrilha".
Ocorre, no entanto, que o crime de quadrilha foi derrubado pelo próprio
Supremo Tribunal Federal na votação dos embargos. Ou seja: a acusação
desmoronou, mas as penas estão sendo cumpridas por dois cidadãos
brasileiros – privados de um direito essencial – como se a tese ainda
permanecesse de pé. E não apenas pelos dois, mas por vários outros
condenados sem foro privilegiado, como Kátia Rabello, José Roberto
Salgado, Marcos Valério e até José Dirceu.
Considere, então, apenas por hipótese, que o argumento da quadrilha
tenha alguma validade. Por que o chamado "mensalão" petista foi
classificado desta maneira, ao contrário do "mensalão" tucano,
organizado pelos mesmos personagens? Graças a essa diferença conceitual,
o ex-governador de Minas Gerais, Eduardo Azeredo, que tinha o foro
privilegiado, ao contrário de Simone e Vinícius, pôde retornar à
primeira instância – o que fará com que seu caso prescreva antes que
complete 70 anos. Seu "mensalão", ao contrário do que envolvia o PT,
chegou fatiado ao STF. Enquanto réus sem foro privilegiado, como
Walfrido dos Mares Guia e o tesoureiro Claudio Mourão caíram em primeira
instância, beneficiando-se assim da prescrição, Azeredo subiu ao STF.
Mas sua renúncia ao mandato parlamentar, numa explícita fuga da espada
suprema, garantiu a ele o duplo grau de jurisdição – benefício negado
aos personagens mequetrefes da Ação Penal 470.
Se esse argumento ainda não lhe convenceu de que a Ação Penal 470 foi
um julgamento político, pense então no porquê da quadrilha ter sido
montada com 40 personagens pelo então procurador-geral Antonio Fernando
de Souza, em sua denúncia original. Não terá sido para alimentar a
mítica
imagem de que o Brasil era governador por um Ali Babá e seus 40
ladrões, tema, aliás, de capa de uma notória
revista semanal? Por que
não 37, 38, 39, 41, 42 ou 43? Afinal, outros personagens, inclusive o
atual prefeito de uma grande capital, que sacou R$ 3 milhões do chamado
"valerioduto", foram deixados de fora da denúncia. Qual é a explicação?
Não há explicação, assim como não há justificativa para que o caso
seja tratado como "mensalão", palavra que pressupõe a existência de uma
mesada, ou de pagamentos regulares a parlamentares. Todas as perícias
realizadas por órgãos técnicos e pela própria Polícia Federal comprovam
que os saques no Banco Rural foram realizados uma única vez. Ou seja:
serviram para pagar dívidas de campanha de políticos do PT e da base
aliada. Foi um caso típico de caixa dois eleitoral – o que, obviamente,
não elimina sua gravidade. Apenas não foi "mensalão". E o mais engraçado
é que o próprio criador da palavra, Roberto Jefferson, admitiu,
publicamente, que se tratava apenas de uma figura retórica.
Passemos, então, aos casos concretos. Por que João Paulo Cunha,
ex-presidente da Câmara dos Deputados, está condenado e preso por
peculato, acusado de desviar verbas de publicidade da Câmara dos
Deputados, se todos os recursos desembolsados pela casa foram
efetivamente transferidos para o caixa de empresas de comunicação, como
Globo, Folha e Abril, conforme atestam diversas perícias? E se alguma
dessas empresas bonificou agências de publicidade, o fez seguindo suas
políticas internas.
Como acreditar, então, no desvio milionário de verbas do Banco do
Brasil, se as campanhas de publicidade da Visanet – uma empresa privada,
diga-se de passagem – foram efetivamente realizadas e comprovadas? Pela
lógica, é impossível que R$ 170 milhões tenham sido desviados para os
cofres do mensalão e, ao mesmo tempo, transferidos para veículos de
comunicação que executaram as campanhas da Visanet.
Afora isso, e o caso de José Dirceu, condenado sem provas, segundo
juristas à esquerda, como Celso Bandeira de Mello, e à direita, como
Ives Gandra Martins? Ou condenado por uma teoria, a do "domínio do
fato", renegada por seu próprio criador, o jurista alemão Claus Roxin.
Como explicar sua condenação sem admitir a hipótese levantada pelo
ex-presidente Lula de que a Ação Penal 470 foi, sim, um julgamento
político?
Não apenas político, mas construído com um calendário feito sob
medida para sincronizá-lo com as eleições municipais de 2012. E
transformado em espetáculo midiático por grupos de comunicação que têm
uma agenda política intensa, mas não declarada. Uma agenda que pode ser
sintetizada no objetivo comum de desmoralizar e criminalizar um partido
político que, a despeito dos ataques de adversários e dos seus próprios
erros internos, ainda representa os anseios de uma parte considerável da
sociedade brasileira.
Aliás, na nota em que afirma que as declarações de Lula merecem
"repúdio" da sociedade, o presidente do Supremo Tribunal Federal,
Joaquim Barbosa, exalta o fato de as sessões terem sido transmitidas ao
vivo, como num reality show. Foi exatamente essa mistura entre Justiça,
da qual se espera sobriedade, e Big Brother que permitiu que o
julgamento se tornasse ainda menos técnico – e mais político. Aos
ministros, transformados em astros de
novela, o que mais interessava era
estar bem na
foto – ou escapar da faca no pescoço apontada por
colunistas supostamente independentes.
Prova cabal disso foi o que aconteceu com Celso de Mello, às vésperas
de definição sobre se deveria aceitar ou não os embargos infringentes.
Seu voto foi adiado, numa chicana conduzida pelo próprio presidente da
corte, para que revistas semanais pudessem pressioná-lo antes do voto
decisivo – uma pressão, registre-se, que, no caso do decano, resultou
infrutífera.
Se não bastassem os abusos do processo em si, como entender então o
realismo fantástico da execução penal, que transformou o presidente do
Supremo Tribunal Federal em carcereiro-mor da Nação? Sim, Joaquim
Barbosa chamou para si todos os passos da execução das penas. E escolheu
o mais notório dos réus, o ex-ministro José Dirceu, como objeto de sua
vingança.
Mantê-lo preso, em regime fechado, e impedindo-o de exercer o
direito ao trabalho, contrariando a decisão do próprio plenário da
corte, bem como a recomendação do Ministério Público Federal, é uma
decisão técnica ou política? Se for técnica, que Joaquim Barbosa se
digne a explicá-la à sociedade.
O fato concreto é: em Portugal, Lula disse uma verdade quase
absoluta, mas nunca uma verdade doeu tanto na elite brasileira. Aliás,
uma verdade que só não foi completa porque Lula errou na matemática. O
julgamento da Ação Penal 470 foi 100% político. O que falta agora a Lula
é se mostrar efetivamente solidário a seus companheiros, que, sim, eram
e ainda são de sua confiança."