A manipulação de fatos e indicadores entrou tão fundamente no processo de produção da mídia tradicional no Brasil que mesmo o leitor crítico, que pela experiência sai vasculhando contradições e inconsistências, tem dificuldade para encontrar o viés que os editores querem impor ao público. Não basta analisar as manchetes e avaliar as escolhas de destaques entre as principais notícias; também não é suficiente ler nas entrelinhas o que a narrativa jornalística tenta esconder: é preciso adivinhar a malícia e seguir suas pegadas.
Vejamos, por exemplo, o que acontece com o noticiário sobre a crise de
abastecimento de água na região metropolitana de São Paulo: a estratégia
de comunicação do governo paulista consiste em desviar a atenção para a
questão da energia, e com isso colocar na perspectiva do público a
parte de responsabilidade que cabe ao governo federal.
Como se faz isso? Com parcelas da verdade, cuidadosamente articuladas
para que pareçam compor a verdade inteira. Por exemplo, ao afirmar que
1,2 milhão de moradores da região Oeste de São Paulo ficaram sem água na
quarta-feira (21/1), porque faltou energia numa estação de
bombeamento, a Sabesp não está mentindo. Está apenas colocando um fato
menor como tapume para esconder a causa principal da crise hídrica: a
falta de investimento na melhoria de sua rede. Mas essa vertente cria
uma chance para a imprensa fazer a perigosa mistura de água e
eletricidade e criticar o governo federal.
Essa estratégia é referendada pelo próprio Palácio dos Bandeirantes e
realizada pelos principais veículos de comunicação, que gostosamente
embarcam na ficção criada para esconder a irresponsabilidade dos que
governam o mais rico estado da Federação desde antes da virada do
século.
Mas a mentira dissimulada em meias-verdades tem pernas curtas: uma
pesquisa realizada pelo Ibope entre os dias 24 de novembro e 8 de
dezembro de 2014 e publicada na sexta-feira (23/1) revela que 68% dos
paulistanos — ou alguém da família — tinham sofrido problemas de falta
de água já nos últimos meses do ano passado, ou seja, antes da onda de
calor que inaugurou o verão. E a maioria deles afirma que a crise
hídrica foi provocada por “falta de planejamento do governo estadual”.
Pau-de-arara de paulista
A consulta faz parte do estudo conhecido como Irbem – Indicadores de
Referência de Bem-Estar no Município —, encomendado pela ONG Rede Nossa
São Paulo e pela Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Os dados
apontam, segundo o Globo, que 91% dos paulistanos puseram a
culpa do problema no governo do estado e na Companhia de Saneamento
Básico (Sabesp). Sobre as perspectivas diante da crise de
abastecimento, há um evidente pessimismo: 82% acreditavam, em dezembro,
que é grande o risco de a água acabar completamente.
O estudo inclui 25 temas na percepção dos moradores da capital paulista
sobre suas condições de vida, entre eles saúde, educação, habitação,
lazer, trabalho, sexualidade e consumo. Além de mostrar que o noticiário
não consegue esconder completamente a verdade da população, o estudo
revela que, no quadro geral, o paulistano ainda considera que a crise
não afetou severamente sua percepção de bem estar: mesmo com a falta de
água e apesar do intenso noticiário falando em crise econômica, metade
dos entrevistados diz que a qualidade de vida ficou estável no ano
passado e 37% afirmam que até melhorou.
Considerando-se os dois grupos, pode-se concluir que a grande maioria
tem uma visão muito mais otimista da realidade do que a imprensa. No
entanto, a pesquisa mostra uma evidência clara da deterioração das
condições gerais de vida na maior cidade do país: 57% dos entrevistados
afirmaram que, se tivessem a oportunidade, se mudariam para outra
cidade.
Os jornais escondem essa realidade, porque a constatação de que a
maioria dos paulistanos pensa em inverter o fluxo migratório os
obrigaria a criticar as políticas públicas adotadas em território
paulista nos últimos anos.
A imagem de uma enorme fila de orgulhosos paulistanos engarrafando as
estradas rumo ao Nordeste, numa inversão do processo migratório
clássico, é uma ideia que a imprensa não pode assimilar.
Mas é isso que os indicadores do estudo apontam: se pudessem, muitos
daqueles que reelegeram Geraldo Alckmin embarcariam aliviados num
pau-de-arara (com ar condicionado, claro), em busca de uma vida melhor.
Luciano Martins Costa
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