segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Os flagelados de São Paulo



A manipulação de fatos e indicadores entrou tão fundamente no processo de produção da mídia tradicional no Brasil que mesmo o leitor crítico, que pela experiência sai vasculhando contradições e inconsistências, tem dificuldade para encontrar o viés que os editores querem impor ao público. Não basta analisar as manchetes e avaliar as escolhas de destaques entre as principais notícias; também não é suficiente ler nas entrelinhas o que a narrativa jornalística tenta esconder: é preciso adivinhar a malícia e seguir suas pegadas.


Vejamos, por exemplo, o que acontece com o noticiário sobre a crise de abastecimento de água na região metropolitana de São Paulo: a estratégia de comunicação do governo paulista consiste em desviar a atenção para a questão da energia, e com isso colocar na perspectiva do público a parte de responsabilidade que cabe ao governo federal.


Como se faz isso? Com parcelas da verdade, cuidadosamente articuladas para que pareçam compor a verdade inteira. Por exemplo, ao afirmar que 1,2 milhão de moradores da região Oeste de São Paulo ficaram sem água na quarta-feira (21/1), porque faltou energia numa estação de bombeamento, a Sabesp não está mentindo. Está apenas colocando um fato menor como tapume para esconder a causa principal da crise hídrica: a falta de investimento na melhoria de sua rede. Mas essa vertente cria uma chance para a imprensa fazer a perigosa mistura de água e eletricidade e criticar o governo federal.


Essa estratégia é referendada pelo próprio Palácio dos Bandeirantes e realizada pelos principais veículos de comunicação, que gostosamente embarcam na ficção criada para esconder a irresponsabilidade dos que governam o mais rico estado da Federação desde antes da virada do século.


Mas a mentira dissimulada em meias-verdades tem pernas curtas: uma pesquisa realizada pelo Ibope entre os dias 24 de novembro e 8 de dezembro de 2014 e publicada na sexta-feira (23/1) revela que 68% dos paulistanos — ou alguém da família — tinham sofrido problemas de falta de água já nos últimos meses do ano passado, ou seja, antes da onda de calor que inaugurou o verão. E a maioria deles afirma que a crise hídrica foi provocada por “falta de planejamento do governo estadual”.


Pau-de-arara de paulista


A consulta faz parte do estudo conhecido como Irbem – Indicadores de Referência de Bem-Estar no Município —, encomendado pela ONG Rede Nossa São Paulo e pela Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Os dados apontam, segundo o Globo, que 91% dos paulistanos puseram a culpa do problema no governo do estado e na Companhia de Saneamento Básico (Sabesp). Sobre as perspectivas diante da crise de abastecimento, há um evidente pessimismo: 82% acreditavam, em dezembro, que é grande o risco de a água acabar completamente.


O estudo inclui 25 temas na percepção dos moradores da capital paulista sobre suas condições de vida, entre eles saúde, educação, habitação, lazer, trabalho, sexualidade e consumo. Além de mostrar que o noticiário não consegue esconder completamente a verdade da população, o estudo revela que, no quadro geral, o paulistano ainda considera que a crise não afetou severamente sua percepção de bem estar: mesmo com a falta de água e apesar do intenso noticiário falando em crise econômica, metade dos entrevistados diz que a qualidade de vida ficou estável no ano passado e 37% afirmam que até melhorou.


Considerando-se os dois grupos, pode-se concluir que a grande maioria tem uma visão muito mais otimista da realidade do que a imprensa. No entanto, a pesquisa mostra uma evidência clara da deterioração das condições gerais de vida na maior cidade do país: 57% dos entrevistados afirmaram que, se tivessem a oportunidade, se mudariam para outra cidade.


Os jornais escondem essa realidade, porque a constatação de que a maioria dos paulistanos pensa em inverter o fluxo migratório os obrigaria a criticar as políticas públicas adotadas em território paulista nos últimos anos.


A imagem de uma enorme fila de orgulhosos paulistanos engarrafando as estradas rumo ao Nordeste, numa inversão do processo migratório clássico, é uma ideia que a imprensa não pode assimilar.


Mas é isso que os indicadores do estudo apontam: se pudessem, muitos daqueles que reelegeram Geraldo Alckmin embarcariam aliviados num pau-de-arara (com ar condicionado, claro), em busca de uma vida melhor.
Luciano Martins Costa



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