A derrota para a Alemanha não pode apagar o brilho da organização
impecável de uma das maiores Copas do Mundo da história. O País deve se
orgulhar de sua capacidade de realizar grandes feitos e da competência e
da qualidade de seu povo
Ana Carolina Nunes (acarol@istoe.com.br), Paula Rocha e Yan Boechat
Finalmente chegou ao fim na terça-feira 8, em Belo Horizonte, o trauma
que marcou o Brasil pelos últimos 64 anos e ajudou a moldar a visão que
os brasileiros têm de si. Quis o destino que o fantasma do Maracanazo,
drama que perseguiu e maltratou a autoestima nacional por mais de seis
décadas, tenha sido enterrado com uma derrota vergonhosa e acachapante
para a Alemanha, no Mineirão. Os sete gols marcados pelo time Müller,
Klose, Khedira & cia tornaram aquele chute meio mascado de Ghiggia
em 1950 um mero soluço na vitoriosa história do futebol brasileiro.
Ainda é cedo para entender a real dimensão de uma derrota tão impactante
numa semifinal de Copa do Mundo disputada em casa. Mas nunca é tarde
para o País analisar o passado e não incorrer no profundo erro que
cometeu em 1950 após perder o Mundial em pleno Maracanã: a crença de que
a culpa para o fracasso em uma partida de futebol se deve a uma
fragilidade, a uma inferioridade, a um pecado original intrínseco à
identidade brasileira. O que ocorreu nestes 64 anos que separam as duas
hecatombes prova, com demonstrações indiscutíveis, que o Brasil e os
brasileiros precisam livrar-se de uma vez por todas do que o gênio
Nelson Rodrigues classificou como complexo de vira-latas.
Os profundos avanços econômicos, sociais, tecnológicos e culturais
brasileiros nas últimas seis décadas são suficientes para aniquilar na
raiz qualquer ilação sobre uma pretensa precariedade da alma nacional.
De nação puramente agrária, em um lento processo de industrialização e
absolutamente desigual, o Brasil transformou-se em uma das maiores
economias do mundo, numa das mais avançadas democracias do planeta, dono
de um parque tecnológico pujante e ator importante no cenário
geopolítico regional e global. Trata-se ainda, é verdade, de um país em
construção, com uma série de duros e complexos desafios a enfrentar. Mas
é inegável que o Brasil de 2014 não parece nem sombra daquele de seis
décadas atrás – e isso não é obra de vira-latas preguiçosos e
desleixados. Creditar a derrota de terça-feira a uma suposta supremacia
moral alemã, ou a vícios de um povo indolente, é jogar fora mais de 50
anos de trabalho suado, de história vitoriosa confirmada por uma
infinidade de estatísticas. Até mesmo no campo – hoje de gosto amargo –
do futebol. Desde 1963, as duas seleções se enfrentaram 22 vezes. O
Brasil venceu 12 confrontos e empatou cinco. Já os alemães venceram
apenas cinco jogos, incluindo a goleada do Mineirão.
O vira-latismo, apesar de antigo, é persistente. Volta e meia uma
espécie de surto toma conta do País e, olhando-se de longe, tem-se a
impressão de que o Brasil está sempre prestes a sucumbir a uma inerente
incapacidade. Foi assim nos meses que antecederam a Copa do Mundo. Até o
início da competição, uma vaga de pessimismo espalhou-se por todos os
cantos. Os estádios não ficariam prontos, os aeroportos iriam colapsar, a
violência tornaria a vida dos estrangeiros um inferno, os protestos e
greves paralisariam a economia. O clima era tão ruim que até mesmo o
Comitê Olímpico Internacional se dizia preocupado com a capacidade de o
País organizar um evento da magnitude da Olimpíada.
Não foi preciso muito tempo para a realidade se impor. Em menos de uma
semana de Mundial, brasileiros, turistas, jornalistas e mesmo quem
estava do outro lado do mundo já começavam a considerar esta como a
melhor Copa de todos os tempos. Goleadas históricas, jogos notáveis,
viradas emocionantes, disputas improváveis de pênaltis fizeram dentro do
campo este Mundial para lá de especial. Fora dele, centenas de milhares
de turistas ficaram absolutamente encantados com a maneira de ser do
brasileiro. O acolhimento, a generosidade, a capacidade ímpar no mundo
de viver com as diferenças e se adaptar a elas conquistaram aqueles que
vieram ao Brasil temendo encontrar o caos em seu sentido mais amplo.
Mesmo na infraestrutura, uma área em que o Brasil de fato precisa
avançar muito, tudo deu certo. O transporte público nas grandes cidades,
como em São Paulo, Rio ou Belo Horizonte, funcionou sem problemas. Os
aeroportos, o grande calcanhar de aquiles deste Mundial, suportaram o
fluxo concentrado de passageiros de forma exemplar. O percentual de voos
atrasados durante a Copa foi inferior à média europeia, por exemplo. E
os estádios, tão criticados, cumpriram seu papel com elegância. É
verdade que alguns deles, como a Arena Corinthians, iniciaram o torneio
ainda necessitando de ajustes, mas que foram resolvidos rapidamente.
Apesar do naufrágio do time brasileiro, é impossível não concordar que,
se essa não foi a “Copa das Copas”, chegou muito perto de ser. Até um
esquema milionário de venda de ingressos por tubarões ligados à Fifa –
impunes em várias paragens – acabou desbaratado pela sempre tão
criticada polícia brasileira. “Tudo funcionou bem, tudo foi ótimo. Menos
a nossa seleção, essa é que não ficou pronta para o Mundial”, brinca o
humorista Hélio de La Peña. Outro que ficou impressionado com o que viu
foi Mauricio de Sousa, o criador da turma da Mônica. “Foi um sucesso. A
profecia da catástrofe não se concretizou.”
Qual o motivo, então, para o brasileiro ter apostado tanto no fracasso
da sua Copa e ter temido um constrangimento colossal justo no seu grande
momento de apresentar ao mundo a capacidade de organizar um evento
desta magnitude? “É engraçada a dúvida que surgiu no Brasil sobre sua
condição de realizar um megaevento de porte mundial”, diz Bryan McCann,
professor de história brasileira da Universidade Georgetown, em
Washington, nos Estados Unidos. “Foi tudo muito aceitável ou melhor do
que a média mundial e quem apostou em desastre claramente exagerou”, diz
ele. Para o diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do
Mackenzie, em São Paulo, Valter Caldana, o que houve foi um debate
acalorado demais, que induziu ao erro de avaliações. “O debate saiu do
campo técnico e político e foi para o campo eleitoral, o que sempre pode
ultrapassar os limites do bom senso”, diz ele.
Com as questões de infraestrutura resolvidas, sobrou espaço para que o
Brasil mostrasse ao mundo exatamente o que tem de mais único, de mais
especial, algo que os próprios brasileiros têm dificuldade em
compreender e aceitar: a tal da brasilidade, esse conjunto de
características que une um país de dimensões continentais como nenhum
outro no mundo. Darcy Ribeiro, o antropólogo que, como poucos, conseguiu
traduzir em palavras a alma brasileira, gostava de dizer: “Os
brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma só gente,
pertencente a uma mesma etnia”. O sociólogo Alberto Carlos Almeida,
autor do best-seller “A Cabeça do Brasileiro”, diz que, apesar da
tradição europeia, não somos um povo europeu. “Essa Copa serviu para
mostrar ao mundo as características muito próprias do brasileiro, como a
alegria, a flexibilidade e a nossa imensa capacidade de conciliação”,
diz ele. “O brasileiro poderia ser mais sério, é verdade. Mas por outro
lado não podemos renegar quem somos. A alegria do povo brasileiro é algo
maravilhoso, não podemos perder isso”, diz o filósofo Renato Janine
Ribeiro. Darcy Ribeiro argumentava que essa alegria veio do índio, para
quem o sentido da vida era só um: viver.
E não se trata apenas de alegria. Há muita capacidade também. São poucos
os países do mundo que podem se orgulhar de ter uma empresa de pesquisa
como a Embrapa, que com tecnologia puramente nacional conseguiu fazer
com que o Brasil se transformasse em um dos maiores produtores de grãos
do planeta. Ou como a Embraer, por exemplo, que pelo empenho de
engenheiros nacionais é hoje uma das quatro maiores fabricantes de
aviões do mundo. Ou o que dizer de artistas que influenciaram – e
influenciam – a arte mundial, como João Gilberto, Tom Jobim e Heitor
Villa-Lobos. Por isso, imaginar que a derrota, por mais humilhante que
seja, em uma partida de futebol, tem o poder de sintetizar a pretensa
inferioridade de um povo como o brasileiro é mais que burrice, trata-se
de má-fé. Como diria João Ubaldo Ribeiro, com toda a sua crítica ácida à
formação histórica do Brasil: Viva o povo brasileiro.
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