Os filhos do porteiro da Danuza resolveram ir ao shopping center. E a justiça de SP autorizou guardas a dizer-lhes: Dá o fora!.
por: Saul Leblon
O Brasil tem cerca de 500 shoppings centers.
O conjunto fatura R$ 184 bi por ano, ocupa mais de 11 milhões de m2 - uns 2. 200 campos de futebol; emprega 870 mil pessoas.
Em
40 anos, desde 1996 quando surgiu o primeiro até 2006, foram erguidos
350 shoppings no país; de lá para cá a expansão foi geométrica e
ininterrupta. Nos últimos sete anos surgiram mais 120.
Outros 30 estão previstos para inauguração em 2014.
O
país inteiro – capitais e interior — foi tricotado por esses centros de
compra e lazer que tem a cara e a permeabilidade da estrutura social
erguida pelo capitalismo por essas bandas.
A rede de shoppings foi planejada para nuclear um público alvo da ordem de 40 milhões de pessoas.
O Brasil tem mais de 190 milhões de habitantes: 150 milhões estão fora.
Uma parcela dos excluídos agora quer entrar.
O rolezinho é uma evidencia da pressão exercida na parede do dique.
Quem
quer entrar entende (com ou sem razão) que o Brasil limpo, organizado,
atraente, refrigerado, seguro, iluminado, rico, antenado, onde faísca la
dernier cru do consumo e, vá lá, bonito, para os padrões dominantes,
está lá dentro.
Não nas ruas desoladoras e escaldantes das periferias conflagradas onde vive a maioria dos integrantes do rolê.
Pode-se
– deve-se - discordar da matriz de valores que atribui a um bunker do
consumo o padrão de sociedade desejável para viver e se divertir.
Mas há razões para isso.
Um
dado sugestivo: até o ano passado, apenas 13,5% dos municípios
brasileiros dispunham de uma secretaria voltada exclusivamente para a
cultura.
Tê-la não é garantia de grande coisa.
Mas a
escala da ausência emite um sinal da atenção dispensada a uma área
que fala diretamente à juventude --e poderia oferecer-lhe um ponto de
fuga à pulsão consumista, diuturnamente martelada ao seu redor.
Esforços de investimento público tem sido feitos nessa direção.
O
número de cidades com bibliotecas, por exemplo, saltou para 98% em
2012, praticamente universalizando esse equipamento, restrito a 70%
delas até 1999.
Mas uma biblioteca convencional, de mobiliário
imaginável e acervo presumível, em qualidade e quantidade, será um
espaço suficiente para satisfazer as expectativas de desfrute, encontro e
lazer de quem adere a um rolezinho?
Em 2007, o governo criou um Programa para o Desenvolvimento da Economia da Cultura (Procult).
Através do BNDES já financiou a construção ou a reforma de 259 salas de cinema.
Mas
a maioria dos cinemas do país fugiu igualmente para o interior dos
shoppings por conta da insegurança que também despovoou praças e
jardins, capturados pelo consórcio drogas & desmazelo.
Apenas 10% dos municípios brasileiros dispõem de cinemas atualmente.
Pesquisa
desta semana do Ibope informa que as ‘classes’ C e D bateram recorde
de horas diante da televisão em 2013: média de seis horas e 40 minutos.
Por dia.
E convenhamos, não dá para imaginar que todo mundo vá
se reunir numa lan house, presente, aí sim, em 82% da malha urbana e, de
fato, encontrável em qualquer bairro ou favela por mais pobre que
seja.
O espaço virtual tem limites.
O rolezinho se vale
da capilaridade digital para convocar os encontros , mas representa ele
mesmo (felizmente) a insuficiência da realidade virtual na vida humana.
A
dupla insuficiência – material e virtual - misturada a uma revolta
difusa, temperada de hormônios e apimentada com o deboche e o anseio
por identidade olha em volta e enxerga o quê?
Enxerga aquilo que
distraidamente ou de forma deliberada foi sendo construído nas entranhas
da velha malha urbana, e para cujo declínio contribuiu ao inocular a
decadência no pequeno comércio, a escuridão no jardim, a solidão no
centro velho e o sucateamento do (parco) equipamento público.
O shopping center, a nova cidade brasileira.
Prefiguração
do sonho neoliberal, ela materializa um ordenamento coletivo onde tudo
é privado (leia o blog do Emir, nesta pág).
Por definição, a cidade da mercadoria é o jazigo da cidadania.
Não só.
O
anestesiante paradigma de ‘eficiência’ do shopping engorda o
descompromisso com que a elite consumidora encara seus deveres em
relação ao espaço coletivo ao seu redor.
Por que, enfim, pagar
mais pelo IPTU se já tenho o que quero e o que a cidade numa terá no
shopping –ainda que esse adicional corresponda, por dia, a uma fração
do preço de um cafezinho do Starbucks no Iguatemi?
O rolezinho sacode o pilar dessa ordem excludente deixando aflorar um conflito que há muito incomoda o conforto das elites.
Quem
não se lembra do ‘transtorno’ que a vizinha favela Funchal causava ao
Vaticano dos shoppings centers no Brasil, a famosa Daslu – 20 mil m2 de
pura ostentação, gastos médios de U$ 15 mil/mês por cliente e uma
sonegação de imposto de estupendo R$ 1 bilhão?
Ou do desabafo da socialite Danuza Leão, na Folha, em dezembro de 2012?
Inconsolável
com o Brasil do PT, a então colunista lamentava como ficou difícil “ser
especial” nesses tempos em que “todos têm acesso a absolutamente tudo,
pagando módicas prestações mensais” -- musicais na Broadway, por
exemplo, que graça tem se “por R$50 mensais, o porteiro do prédio
também pode ir”.
Os filhos do porteiro da Danuza resolveram agora ir ao shopping.
E a justiça de SP autorizou seis deles a dizer-lhes: ‘Dá o fora!’.
Esse é o capítulo da novela brasileira nos dias que correm.
As
raízes desse enredo de paralelas que agora se cruzam em conflito
aberto na porta de santuários do consumo remetem à mutação inconclusa
verificada no país desde 2003.
Qual seja, a pobreza caiu pela
metade; o mercado de trabalho atingiu as franjas do pleno emprego; o
salário mínimo ganhou quase 60% de poder de compra, acima da inflação.
A desigualdade continua obscena, mas as placas tectônicas se moveram.
Privilégios
obcecados em preservar um ordenamento social patológico defendem como
virtude macroeconômica restituir as fronteiras do conflito original
aos marcos do cordão sanitário instituído nos anos 90.
O superávit fiscal ‘robusto’ para assegurar o ganho dos rentistas é um desses marcos.
Outro: o salto adicional nas taxas de juros, até encostar a faca recessiva na garganta da massa ignara.
A crispação em torno dos rolezinhos mostra o quanto será difícil devolver a pasta de dente ao tubo da história.
Nesse empurra-empurra, subjacente à disputa presidencial de outubro, há nuances que dizem respeito diretamente à esquerda.
O
‘rolezinho’ denuncia uma dimensão da luta política rebaixada nos
últimos anos na conta da ilusão economicista de que o holerite e o
crescimento resolviam o resto.
São imprescindíveis, diga-se.
Mas
o discernimento histórico que requer a longa construção de uma
sociedade justa e virtuosa nunca será um dote intrínseco à conquista do
legítimo direito de viajar de avião, ou comprar bens duráveis a
crédito, nem tampouco uma qualidade imanente a governantes eleitos
pelos pobres.
Erguer essas linhas de passagem é tarefa das
organizações progressistas que se propõem a mudar as formas de viver e
de produzir em sociedade.
É delas a obrigação de associar à luta
econômica sua contrapartida de ideias emancipadoras que ampliem o
horizonte subjetivo para além do consumismo individualista.
Do contrário, o futuro ficará emparedado entre o horizonte do rolezinho e o interdito do dinheiro graúdo.
No
limite, ambos poderão se unir em torno de um tênis Nike, contra uma
repactuação mais arrojada do desenvolvimento que implique outra
modulação do consumo.
O mais difícil na luta pelo
desenvolvimento é produzir valores, dizia o saudoso Celso Furtado, em
palavras de atualidade inexcedível.
Não apenas esse, mas sobretudo esse passo a esquerda deve ao Brasil.
E não parece recomendável adiá-lo mais uma vez ‘para depois da próxima eleição’.
.