"...Pois é, o Brasil é o único país
do mundo que distribui gratuitamente o tratamento que eu faço para
Esclerose Múltipla. Atenção: o ÚNICO. ..."
Há seis anos atrás eu tive uma dor no olho. Só que a dor no olho era, na
verdade, no nervo ótico, que faz parte do sistema nervoso. O meu nervo
ótico estava inflamado, e era uma inflamação característica de um
processo desmielinizante. Mais tarde eu descobri que a mielina é uma
camada de gordura que envolve as células nervosas e que é responsável
por passar os estímulos elétricos de uma célula para a outra. Eu
descobri também que esta inflamação era causada pelo meu próprio sistema
imunológico que, inexplicavelmente, passou a identificar a mielina como
um corpo estranho e começou a atacá-la. Em poucas palavras: eu
descobri, em detalhes, como se dá uma doença-auto imune no sistema
nervoso central. Esta, específica, chama-se Esclerose Múltipla. É o que
eu tenho. Há seis anos.
Os médicos sabem tudo sobre o coração e quase nada sobre o cérebro — na
minha humilde opinião. Ninguém sabe dizer porque a Esclerose Múltipla se
manifesta. Não é uma doença genética. Não tem a ver com estilo de vida,
hábitos, vícios. Sabe-se, por mera observação estatística, que mulheres
jovens e caucasianas estão mais propensas a desenvolver a doença. Eu
tinha 26 anos. Right on target.
Mil médicos diferentes passaram pela minha vida desde então. Uma via
crucis de perguntas sem respostas. O plano de saúde, caro, pago
religiosamente desde sempre, não cobria os especialistas mais
especialistas que os outros. Fui em todos — TODOS — os neurologistas
famosos — sim, porque tem disso, médico famoso — e, um por um, eles viam
meus exames, confirmavam o diagnóstico, discutiam os mesmos tratamentos
e confirmavam que cura, não tem. Minha mãe é uma heroína — mãos dadas
comigo o tempo todo, segurando para não chorar. Ela mesma mais destruída
do que eu. E os médicos famosos viam os resultados das ressonâncias
magnéticas feitas com prata contra seus quadros de luz — mas não olhavam
para mim. Alguns dos exames são medievais: agulhas espetadas pelo
corpo, eletrodos no córtex cerebral, “estímulos” elétricos para ver se a
partes do corpo respondem. Partes do corpo. Pastas e mais pastas sobre
mesas com tampos de vidro. Colunas, crânio, córneas. Nos meus olhos,
mesmo, ninguém olhava.
O diagnóstico de uma doença grave e incurável é um abismo no qual você é
empurrado sem aviso. E sem pára-quedas. E se você ta esperando um “mas”
aqui, sinto lhe informar, não tem. Não no meu caso. Não teve revelação
divina. Não teve fé súbita em alguma coisa maior. Não teve uma
compreensão mais apurada das dores do mundo. O que dá, assim, de cara, é
raiva. Porque a vida já caminha na beirada do insuportável sem essa
foice tão perto do pescoço. Porque já é suficientemente difícil estar
vivo sem esta sentença se morte lenta e degradante. Dá vontade de
acreditar em Deus, sim, mas só se for para encher Ele de porrada.
O problema é que uma raiva desse tamanho cansa, e o tempo passa. A minha
doença não me define, porque eu não deixo. Ela gostaria muitíssimo de
fazê-lo, mas eu não deixo. Fiz um combinado comigo mesma: essa merda vai
ter 30% da atenção que ela demanda. Não mais do que isso. E segue o
baile. Mas segue diferente, confesso. Segue com menos energia e mais
remédios. Segue com dias bons e dias ruins — e inescapáveis internações
hospitalares.
A neurologista que me acompanha foi escolhida a dedo: ela tem exatamente
a minha idade, olha nos meus olhos durante as minhas consultas, só ri
das minhas piadas boas e já me respondeu “eu não sei” mais de uma vez.
Eu acho genial um médico que diz “eu não sei, vou pesquisar”. Eu não
troco a minha neurologista por figurão nenhum.
O maior especialista em Esclerose Múltipla do Brasil atende no HC, que é
do SUS, num ambulatório especial para a doença. De graça, ou melhor,
pago pelos impostos que a gente reclama em pagar. Uma vez a cada seis
meses, eu me consulto com ele. É no HC que eu pego minhas receitas —
para o tratamento propriamente dito e para os remédios que uso para
lidar com os efeitos colaterais desse tratamento, que também me são
entregues pelo SUS. O que me custaria fácil uns outros R$ 2.000,00.
Eu acredito em poucas coisas nessa vida. Tenho certeza de que o mundo
não é justo, mas é irônico. E também sei que só o humor salva. Mas a
única pessoa que pode fazer piada com a minha desgraça sou eu — e faço
com regularidade. Afinal, uma doença auto-imune é o cúmulo da
auto-sabotagem.
Mas attention shoppers: fazer piada com a tragédia alheia não é humor, é
mau gosto. É, talvez, falha de caráter. E falar do que não se conhece é
coisa de gente burra. Se você nunca pisou no SUS — se a TV Globo é a
referência mais próxima que você tem da saúde pública nacional, talvez
esse não seja exatamente o melhor assunto para o seu, digamos, “humor”.
Quem me conhece sabe que eu não voto — não voto nem justifico. Pago lá
minha multa de três reais e tals depois de cada eleição porque me nego a
ser obrigada a votar. O sistema público de saúde está longe de ser o
ideal. E eu adoraria não saber tanto dele quanto sei. O mundo, meus
amigos, é mesmo uma merda. Mas nós estamos todos juntos nele, não tem
jeito. E é bom lembrar: a ironia é uma certeza. Não comemora a desgraça
do amiguinho, não.
Nina Crintzs
Do Sociedade Sustentável
No Blog do Mário
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