Em mais uma operação “casada” entre órgãos de imprensa e o candidato a ocupar a Presidência da República a partir do ano que vem José Serra, o cultivo de coca na Bolívia está sendo transformado em factóide eleitoral do qual o tucano pretende se beneficiar com seu discurso acusatório ao país vizinho.
Não conseguirei traduzir quanto me é doloroso ver o que estão fazendo com a imagem daquele povo e daquele país que cresce, desenvolve-se, reduz a pobreza e a miséria como nunca, educa o povo e combate as drogas com sucesso crescente.
Posso dizer bastante sobre a Bolívia porque já estive em várias partes do país, tais como Santa Cruz de La Sierra, La Paz, Cochabamba, Oruro, Potosi e Sucre, e posso garantir que o boliviano consome muito menos drogas que o brasileiro, o que, inclusive, é atestado pelo último “Relatório Mundial sobre Drogas 2009” divulgado pelo “Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime” (UNODC, sigla em inglês) em junho do ano passado.
Além disso, o relatório mostra que a Bolívia perde para a Colômbia e para o Peru em termos de exportação ilegal de pasta de coca e que boa parte da cocaína que entra no Brasil pela Bolívia vem desses outros países através do território boliviano.
Hoje, domingo, a Folha de São Paulo publica uma reportagem irresponsável sob uma manchete mentirosa dizendo que a Polícia Federal “avalizaria” as acusações de Serra à Bolívia. Lendo a matéria, percebe-se que é tudo mentira. Valendo-se do mesmo recurso do grampo imaginário contra Gilmar Mendes, o jornal cita uma fonte anônima como se tivesse recebido uma declaração oficial da PF.
E mesmo que o tal relatório da PF exista, não pode ser tomado por posição oficial da instituição, pois em organizações sem orientação político-ideológica oficial como a nossa Polícia Federal passou a ser neste governo, pode-se conseguir relatórios para todos os gostos. Só que um relatório, mesmo existindo, é muito diferente de uma conclusão oficial da instituição.
Espertamente, então, o jornal da família Frias não ouviu a Polícia Federal sobre a “denúncia” que faria neste domingo com base em fontes anônimas, pois um desmentido dela se chocaria com a manchete que se queria colocar, de que aquela instituição teria “avalizado” o factóide eleitoral de Serra.
Conheço muito bem o povo boliviano. É um povo de costumes muito mais recatados, sobretudo entre a população indígena. A folha de coca faz parte da cultura deles. Os bolivianos usam-na para fazer infusões com fins medicinais, como o eficientíssimo “té de coca”, quase mágico no combate aos efeitos da altitude no altiplano da Bolívia.
Por toda região dos Andes (sobretudo na Bolívia, no Peru, no Equador e na Colômbia), a folha de coca é amplamente consumida e industrializada. Pode-se comprar chá de coca industrializado ou a própria folha até em supermercados.
Ainda assim, o boliviano, proporcionalmente, usa muito menos drogas do que os povos de países mais ricos que importam ilegalmente da Bolívia a matéria-prima da cocaína. Consome-se menos maconha, menos ecstasy, quase nada de crack e até a própria cocaína. O boliviano não gosta de se drogar como os povos dos países mais ricos.
Na verdade, apesar de que, sob Evo Morales, a Bolívia deixou de ser o país mais pobre da América Latina, aquele ainda é um país paupérrimo e sem recursos. É muito mais difícil para a Bolívia fiscalizar todo seu território. Nem o Brasil, com todos os seus recursos, consegue.
O discurso de Serra vai ao encontro do discurso americano sobre impedir o milenar cultivo de coca nos Andes. É óbvio que, como nessa região se produz enorme parte da coca cultivada hoje – que, inclusive, tem fins farmacológicos no mundo inteiro –, é dos países andinos que vem a matéria-prima da cocaína.
Cabe a cada país fazer como a Bolívia e coibir a produção, o consumo e o tráfico de cocaína, fiscalizar fronteiras, reduzir a miséria de forma a reduzir a mão-de-obra da indústria da droga, a qual se vale das populações carentes para transportar e vender sua produção.
Como Serra fracassa miseravelmente em combater o crack em São Paulo – sobretudo na capital, onde se fuma a droga em certas regiões da cidade à vista de todos, inclusive da polícia, e o Estado não faz nada -, ele inventou essa farsa contra a Bolívia e pôs seu jornal para endossá-la valendo-se de fontes anônimas apresentadas como se fossem oficiais.
É inútil e farsesco eleger a Bolívia como culpada pela nossa dificuldade de lidar com as drogas. Aliás, trata-se de uma dificuldade que até os países mais ricos têm, o que fez com que vários deles as legalizassem. Esse discurso só serve mesmo para um candidato como Serra, que não sabe o que dizer para convencer o eleitorado a elegê-lo.
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