sábado, 29 de maio de 2010

É preciso aprender a erguer pontes sobre o abismo

Por Roger Cohen*


A mediação do Brasil e da Turquia em um acordo para retirar do Irã a maior parte do urânio de baixo nível de enriquecimento (LEU, na sigla em inglês) é importante, seja ele implementado ou não. O motivo é que é um presságio do mundo pós-ocidental emergente.

A predominância anglo-saxã ainda não terminou, mas está em declínio. Washington reagiu negativamente, dizendo que havia esboçado um acordo para seguir com uma quarta rodada de sanções contra o Irã no Conselho de Segurança da ONU. Mas as sanções falharam no passado, e a reação levanta a questão de por que um arranjo que parecia aceitável quando negociado por diplomatas americanos em outubro passado já não é mais.

A violência infligida a sua própria população pelo regime iraniano depois da eleição roubada de 12 de junho do ano passado foi inadmissível, mas ainda é verdade que o isolamento e o confronto só beneficiam a ala linha-dura do Irã, que acha fácil contornar a retórica americana do "eixo do mal". Afinal, quanto mais o Irã puder ser retirado de sua atual posição de pária, melhor para as forças reformistas de lá. Elas são jovens e estão famintas por contato com o mundo.

A Turquia e o Brasil são potências regionais emergentes com interesses econômicos em expansão no Irã e crescentes ambições diplomáticas. Seu envolvimento agradou ao governo iraniano, que gosta de se posicionar como líder de uma nova ordem mundial. O posicionamento é um agravante para o Ocidente, mas, neste caso, isso não importa, se o objetivo central puder ser alcançado: criar espaço para o diálogo e a remoção do urânio de 3,5% de pureza que o Irã tem produzido nas ce ntrífugas de Natanz.

O acordo retoma em grande parte um outro negociado pelos EUA em 2009 e que desandou. A única diferença significativa é que agora o Irã tem mais LEU, com o resultado de que os 1.200 kg a serem levados para a Turquia representariam uma proporção menor do estoque, embora ainda mais da metade.

Não acho que isso importe muito porque o Irã, se honrar o acordo, estará demonstrando uma disposição para trabalhar com a comunidade internacional e remover grande parte do LEU necessário para fazer o urânio altamente enriquecido usado em uma bomba.

Diante da antiga duplicidade e da intransigência iranianas, é recomendável prudência. Mas eu sinto no intenso ceticismo inicial do Ocidente um desprezo mal disfarçado pelos esforços do presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, e do premiê turco, Recep Tayyip Erdogan.

Isso é um erro. Exatamente porque o Irã investiu muito em suas relações com a Turquia e o Brasil, agora relutará em fazer de bobos os dois líderes e recuar.

O presidente dos EUA, Barack Obama, enfrenta uma decisão delicada. Seu coração sempre foi favorável a uma reaproximação com o Irã. Ele vê, acertadamente, que o impasse americano-iraniano de 31 anos é obsoleto e prejudicial. Mas a fúria tem varrido o Congresso, cujos representantes prometeram sanções "esmagadoras" e "paralisantes" contra Teerã.

Grande parte do esforço dos EUA foi dedicado ao lobby para que o CS da ONU produza um acordo sobre sanções de seus cinco membros permanentes, com poder de veto -EUA, Reino Unido, França, Rússia e China-, mais Alemanha. Em vez de dizer que a pressão funcionou, na forma da aparente disposição iraniana a se desfazer do LEU, o governo Obama parece ter optado por uma linha dura. Isso foi tentado sob o governo Bush e não deu em nada.

O Irã demonstrou que, de modo geral, é imune às sanções. Se elas falharem mais uma vez em mudar o comportamento iraniano, Obama enfrentará a pergunta: e agora? Ele sabe que EUA e Ocidente não podem suportar uma terceira guerra com um país muçulmano.

Por isso o acordo brasileiro-turco vale a pena. Obama disse à ONU no ano passado que os EUA queriam terminar com a unilateralidade, mas precisavam que os outros países assumissem responsabilidades. "Os que costumavam censurar os EUA por agirem sozinhos agora não podem ficar de lado e esperar que os EUA solucionem sozinhos os problemas do mundo", ele declarou, acrescentando: "Juntos, devemos construir novas coalizões para superar antigas divisões -coalizões de fés e credos diferentes; de norte e sul, leste, oeste, preto, branco e marrom".

Novas coalizões para superar antigas divisões? Para mim, soa como Brasil e Turquia unindo-se para ajudar o Irã e os EUA a superar o abismo que os separa. Isso, por sua vez, ofereceria a possibilidade de aprofundar a paz no Oriente M édio e a segurança global.

*Roger Cohen é colunista do The New York Times

Matéria publicada por Leda Ribeiro (Colaboradora do Blog)

Um comentário:

Alex disse...

Ah! Eu tenho algumas considerações sobre o caso, talvez não muito bem explanadas, mas a tentativa acho que é válida.
1º poonto: Por que os EUA não aceitam de imediato o acordo? Porque significaria aceitar a decadência.
2º ponto: Por que as demais potências que participam do clube da ONU não aceitam de imediato o acordo? Por que eles estão entre a cruz e a espada. Por um lado, loucos para decretar a decadência dos EUA, mas por outro, preocupados com o papel que países emergentes como o Brasil poderão ocupar. Aceitar o acordo pode ser a cartada final para o fim da hegemonia americana e aceitação da importância dos emergentes também na diplomacia internacional.
3º ponto: Por que o Irã aceitou o acordo Brasil/Turquia? Porque não eram os EUA e clube da ONU.
4º ponto: A esta altura do campeonato, abandonar a política externa Lula/Amorim em prol de uma política entreguista Serra/FHC não significa reestabelecer a velha ordem mundial hegemônica estadunidense, mas deixar o Brasil de fora do momento mais importante da 1ª metade do século 21: o surgimento de uma NOVA ORDEM MUNDIAL, sem exageros, claro. O acordo protagonizado por Brasil/Turquia serão gravados nas páginas da História como um grande momento, o Brasil poderá mais se não se deixar "engabelar" (como se diz em Minas) por este senhor, que responde pelo nome de Serra.