Lula e o exorcismo que vem aí
por Luiz Carlos Azenha
por Luiz Carlos Azenha
Uma capa recente do Estadão resumiu de forma enxuta os caminhos
pelos quais a oposição brasileira pode enveredar para tentar interromper
aos 12 anos o domínio da coalizão encabeçada pelo PT no governo
federal.
De um lado, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sugeria renovação do discurso do PSDB.
De outro, um novo depoimento de Marcos Valério no qual ele teria citado o nome do ex-presidente Lula:
Valério foi espontaneamente a Brasília em setembro acompanhado de seu
advogado Marcelo Leonardo. No novo relato, citou os nomes de Lula e do
ex-ministro Antonio Palocci, falou sobre movimentações de dinheiro no
exterior e afirmou ter dados sobre o assassinato do ex-prefeito de Santo
André Celso Daniel.
Curiosamente, no dia seguinte acompanhei de perto uma conversa entre
quatro senhores de meia idade em São Paulo, a capital brasileira do
antipetismo, na qual um deles argumentou que Fernando Haddad, do PT, foi
eleito novo prefeito da cidade por causa do maior programa de compra de
votos já havido na República, o Bolsa Família. Provavelmente leitor da Veja,
ele também mencionou entrevista “espírita” dada por Marcos Valério à
revista, na qual Lula teria sido apontado como chefe e mentor do
mensalão.
Isso me pôs a refletir sobre os caminhos expressos naquelas manchetes que dividiram a capa do Estadão.
Sobre a renovação do discurso do PSDB sugerida pelo ex-presidente FHC,
pode até acontecer, mas não terá efeito eleitoral. O PT encampou a
social democracia tucana e, aliado ao PMDB, ocupou firmemente o centro
que sempre conduziu o projeto de modernização conservadora do Brasil. Ao
PSDB, como temos visto em eleições recentes, sobrou o eleitorado de
direita, o eleitorado antipetista representado pelos quatro senhores de
meia idade e classe média que testemunhei conversando no Pacaembu.
Estimo que o eleitorado antipetista represente cerca de 30% dos votos em
São Paulo, capital, talvez o mesmo em outras metrópoles. Ele alimenta e
é alimentado pelos grandes grupos de mídia, acredita e reproduz tudo o
que escrevem e dizem os colunistas políticos dos grandes jornais e
emissoras de rádio e TV. Há, no interior deste grupo de 30% dos
eleitores, um núcleo duro dos que militam no antipetismo, escrevendo
cartas aos jornais, ‘trabalhando’ nas mídias sociais e participando
daquelas manifestações geralmente fracassadas que recebem grande
cobertura da mídia do Instituto Millenium.
Este processo de retroalimentação entre a mídia e os militantes do
antipetismo é importante, na medida em que permite sugerir a existência
de uma opinião pública que reflete a opinião publicada. É por isso que
os mascarados de Batman, imitadores de Joaquim Barbosa, aparecem com
tanta frequência na capa de jornais; é por isso que os jornais escalam
repórteres e fotógrafos para acompanhar os votos de José Dirceu e José
Genoíno e geram um clima de linchamento público contra os condenados
pelo STF; é por isso que os votos de Joaquim Barbosa e Ricardo
Lewandowski nas recentes eleições foram usados de forma teatral para
refletir a reação da “opinião pública” (de dois ou três, diga-se) ao
“mocinho” e ao “bandido” do julgamento do mensalão. Curiosamente,
ninguém se interessou em acompanhar os votos de Luiz Fux e Rosa Weber.
O antipetismo é alimentado pelo pensamento binário do nós contra eles,
pelo salvacionismo militante segundo o qual do combate às saúvas
lulopetistas dependem a Família, a Pátria e a Liberdade.
Criar essa realidade paralela é importante. Em outras circunstâncias
históricas, foi ela que permitiu vender a ideia de que um governo
popular estava sitiado pela população. Sabe-se hoje, por exemplo, que
João Goulart, apeado do poder pelo golpe cívico-militar de 1964 com
suporte dos Estados Unidos, tinha apoio de grande parcela da população
brasileira, conforme demonstram pesquisas feitas na época pelo Ibope mas
nunca divulgadas (por motivos óbvios).
[Ver aqui sobre o apoio a Jango]
Hoje, o mais coerente partido de oposição do Brasil, a mídia controlada
por meia dúzia de famílias, forma, dissemina e mede o impacto das
opiniões da militância antipetista. O consórcio midiático, no dizer da Carta Maior,
produz a norma, abençoa os que se adequam a ela (mais recentemente a
ministra Gleisi Hoffmann, que colocou seus interesses particulares de
candidata ao governo do Paraná adiante dos do partido ao qual é filiada)
e pune com exílio os que julga “inadequados” (o ministro Lewandowski,
por exemplo).
Diante deste quadro, o Partido dos Trabalhadores, governando em
coalizão, depende periodicamente de vitórias eleitorais como uma espécie
de salvo conduto para enfrentar a barulhenta militância antipetista.
Esta sonha com as imagens da prisão de José Dirceu, mas quer mais: o
ex-presidente Lula é a verdadeira encarnação do Mal. É a fonte da
contaminação do universo político — de onde brotam águas turvas,
estelionatos como o Bolsa Família e postes eleitorais que só servem para
disseminar o Mal.
O antipetismo é profundamente antidemocrático, uma vez que julga
corrompidos ou irracionais os eleitores do PT. Corrompidos pelo
“estelionato eleitoral” do Bolsa Família ou incapazes de resistir à
retórica demagoga e populista do ex-presidente Lula e seus apaniguados.
A mitificação do poder de Lula, como se emanasse de alguém sobre-humano,
é essencial ao antipetismo. Permite afastar o ex-presidente de suas
raízes históricas, dos movimentos sociais aos quais diz servir,
desconectar Lula de seu papel de agente de transformação social. O
truque da desconexão tem serventia dupla: os antipetistas podem posar de
defensores do Bem sem responder a perguntas inconvenientes. Quem são? A
quem servem? A que classe social pertencem? Qual é seu projeto
político? Quais são suas ideias?
A crença de que vencer eleições, em si, será suficiente para diminuir o
ímpeto antipetista poderá se revelar o mais profundo erro do próprio PT
diante da conjuntura política. O antipetismo não depende de votos para
existir ou se propagar. Estamos no campo do simbólico, do quase
religioso.
Os quatro senhores do Pacaembu, aos quais aludi acima, estavam tomados
por uma indignação quase religiosa contra Lula e o PT. Pareciam fazer
parte de uma seita capaz de mobilizar todas as forças, constitucionais
ou não, para praticar o exorcismo que é seu objetivo final. Como
aconteceu às vésperas do golpe cívico-militar de 64, o que são as leis
diante do imperativo moral de livrar a sociedade do Mal?
Nenhum comentário:
Postar um comentário