Saul Leblon
Janio de Freitas, o decano dos comentaristas políticos do país, de quem
não se pode dizer que seja simpatizante do PT, nem mesmo remotamente
lulista, carrega algo indisponível nas dobradiças gelatinosas que
compõem a espinha intelectual e profissional da maioria dos colunistas
do dispositivo midiático conservador: ética profissional.
Sua coluna desta 3ª feira na 'Folha', 'A voz das provas',
funciona como aquela sirene solitária que todavia não hesita em dar ao
odor exalado das páginas ao seu redor o significado que tem na história.
A Suprema Corte do país, a quem caberia em última instância a tarefa de
resguardar a Constituição e o Direito condenou lideranças políticas da
esquerda brasileira com base em descarga verborrágica desprovida do
fundamento basilar de um sentença em regime democrático: a prova do
delito.
'A voz das provas',
demonstra o artigo de Janio de Freitas, foi toscamente substituída e
abafada "pelas imputações (do relator Joaquim Barbosa) compostas só de
palavras".
A ausência do imprescindível foi tolerada; mais que isso, aplaudida e
incentivada. Para legitimar o interesse intrínseco à pauta, animadores
se esponjaram no mesmo vale tudo que se atribui aos réus agora
condenados.
A contradição nos seus próprios termos inclui até mesmo ignorar aquilo que se publica.
Janio não deixa de anotar que foi somente às vésperas do desfecho
ansiosamente cobiçado pelo conservadorismo que em manchete, note-se, "
ao pé da página A 6 de domingo"-- referencia o atilado colunista--, a mesma 'Folha'
que nesta 3ª feira estampa editorial em 1ª página alinhado aos festejos
comemorativos da sentença, entrevistou o jurista alemão Claus Roxin.
Trata-se de um dos teóricos responsáveis pelo conceito do 'domínio do
fato'. Teria sido com base nessa viga mestra que a Suprema Corte do
país, impulsionada pelo jogral midiático, considerou-se dispensada de
reunir provas para a condenação consumada na 2ª feira.
Doutos rábulas de redações, Brasil afora, e sabichões de menor porte,
todavia loquazes na arte da guilhotina higienizadora da ganância petista
pelo poder, teceram proficientes considerações sobre a pertinência do
'domínio do fato'.
Tornou-se a 'Eureka!' do conservadorismo togado e das consciências
sempre hesitantes no meio fio da história. Bastava recitar: "o superior
hierárquico de um suposto ilícito paga pelo crime, mesmo sem provas
diretas que o comprometam". E danem-se as minúcias: a oportuna
transfiguração da multinacional Visanet em anexo do Banco do Brasil, e a
seletiva escolha de um único dos quatro diretores --por acaso um
petista- para avalizar o elo com o PT, deu ao argumento o arcabouço de
peculato doloso. Estava feita a distinção em relação à praxe eleitoral
suprapartidária. Não se exima o caixa 2 da nódoa que amesquinha
programas, aleija lideranças e frauda a urna. Mas não é disso que se
trata, nem é isso o que persegue o coro em torno da Ação Penal 470.
Ademais, o que seria de respeitáveis representantes das 'classes
dirigentes' se fossemos levar a coisa a sério e rebobinar a história
pregressa do país --os crimes cometidos pela ditadura, por exemplo-- com
base nesse esteio 'do Direito alemão', assim proclamado com gula por
bocas obsequiosas? Passemos.
O fato é que 24 horas antes de a corte suprema do país esterilizar suas
responsabilidades na conveniente ação do lança-chamas germânico, o
criador do conceito , discretamente, na página A6 da Folha, como lembra
Janio, abjurou o uso bastardo de sua criação.
"A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o
domínio do fato" --sublinhou Claus Roxin, entre vírgulas, na mencionada
entrevista que há 15 dias aguardava publicação na gaveta do jornal. E
reiterou em límpida advertência: "O mero 'ter que saber' não basta".
Coloque-se essa cena entrecortada à muitas vezes boçal, enfadonha exibição de egos em desfile no STF.
Contraponha-se a nitidez cuidadosa do jurista às frases hermeticamente
recheadas de nada, transbordantes de gerúndios, para aderir ao atropelo
das provas e sentenciar apesar e acima disso. Corte para o gozo
explícito dos interesses ecoados com menos pudor, e frequentemente sem
nenhum pejo, no dispositivo midiático.
Eis um documentário à procura de um autor. Ele deve ser feito. Será feito.
Os doutos figurantes e os sabichões que plasmaram em conjunto um script habilidosamente dotado de cadência e timing
eleitoral que em nada ficam a dever aos dotes de dramaturgos de novelas
e profissionais do marketing político, merecem esse espaço documental.
Terão nele o reconhecimento do labor patriótico embebido em seus textos,
frases e feitos, iluminados para sempre no devido compartimento da
história democrática brasileira.
O efeito será pedagógico e solene. Mas terá também uma dimensão risível pela cota do grotesco.
Quem não se lembra do filme “Annie Hall” de Woody Allen? Há ali uma cena
que sugere a prefiguração desse entrecho, digamos, lúdico.
Numa fila de cinema, um douto sabichão da Universidade de Columbia
pontifica sobre o filme e os filmes, em geral. Sentencia cataratas de
sapiência hermética ancoradas no manuseio legitimador das teorias de
Marshall McLuhan. Wood Allen e sua garota, vivida por Diane Keaton,
ouvem enfadados a buzinaço do especialista em Mcluhan
Até que Woody resolve dar um basta e afronta a ignorância pretensiosa
com algo do tipo: 'Você não entende nada do que está falando'. A
eminente autoridade, então, dá a carteirada mortal: "Sou professor de
semiologia --da Colúmbia-- e com doutorado em McLuhan!”
Allen dá dois passos de lado e introduz o compridão McLuhan; ele mesmo
em carne e osso. O canadense, autor de 'O Meio é a Mensagem' e do
conceito de 'aldeia global' , faz uma ponta para desmontar o falastrão
empolado com um sabão categórico: “Você não entendeu nada da minha
teoria”.
No filme, a intervenção de McLuhan reverteu o engodo feito de palavrório
anestesiante. No Brasil, a desautorização explícita do criterioso Roxin
foi desdenhada pela ignorância ou a má fé. E sua teoria usada para
consagrar um silêncio que ofende a consciência nacional: a voz das
provas.
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