publicado em 2 de janeiro de 2013
Estava
eu posto em sossego, das festas colhendo o doce fruito, tendendo a
voltar às lides apenas para o ano, quando dois excelentes artigos vieram
arrancar-me do merecido repouso.
Refiro-me a Uma proposta de reflexão para o PT, do amigo e governador Tarso Genro, e Pacto adversativo x Pacto progressista, do também amigo e editor, Saul Leblon.
Ainda
que de modos diversos, tocam ambos na mesma tecla de entrada: como pode
a direita brasileira desqualificar a atual experiência democrática das
administrações populares que se sucedem, notadamente no plano federal,
as de Lula e Dilma?
Também deve-se incluir aí tentativas internacionais. Primeiro foi a da The Economist, numa iniciativa digna dos tempos impérios coloniais, pedindo a cabeça do ministro Guido Mantega. Mais recentemente o Financial Times entrou
na dança, montando uma ridícula farsa dialogada em que se misturam
alusões toscas e grosseiras à presidenta Dilma Roussef, ao ministro
Mantega, com outras a Putin e aos BRICS, a Cristina Kirchner, apenas
para manifestar a indigestão que as administrações progressistas da
América Latina provocam na sua linha editorial sempre alinhada com os
princípios da ortodoxia neo-liberal.
Durante muito tempo a mídia
ortodoxa internacional exerceu um “ruído obsequioso” em relação ao
Brasil, visto como uma terra exótica de empreendimentos governamentais
exóticos que “davam certo” no desconcerto universal da hegemonia
neoliberal.
Um
acontecimento mudou essa situação: a vitória de François Hollande na
França, destruindo a “aliança Merkozy” e introduzindo – ainda que de
modo tímido – uma cunha adversa na hegemonia ortodoxa no reino da Zona
do Euro. A partir daí – de modo conjugado com a diminuição ostensiva dos
lucros (e dos bônus, prebendas e sinecuras) do investimento
financeiro-especulativo no Brasil, este tornou-se uma influência
perigosa, que necessariamente deve ser desarticulada para impedir que se
espraie acima do Mediterrâneo. Ainda mais depois da exitosa passagem de
ambos, Lula e Dilma, por Berlim (o primeiro) e Paris (ambos),
articulando um seminário anti-ortodoxia com o próprio Hollande – que
também deve ser desarticulado, ou nem chegar a se articular.
É
nesse movimento internacional que se situam as iniciativas da nossa
direita caseira, tendo sempre em vista a neutralização de qualquer
exercício de soberania popular em nossa terra – iniciativa em que desde
sempre se harmonizaram conservadorismo político e midiático, sobretudo
desde que a Revolução de 30 e acontecimentos em torno introduziram no
cenário político institucional esse “elemento” duvidoso e arriscado, o
chamado “povo brasileiro”, às vezes, simplesmente “o povão”, outras
vezes de modo mais preciso “os trabalhadores”.
Num
ensaio brilhante, publicado em 1945, logo ao fim da Segunda Guerra (‘As
raízes psicológicas do nazismo’), Anatol Rosenfeld caracteriza o
universo espiritual nazista: um misto de sadomasoquismo. De modo
masoquista, o típico nazista se situava como “inferior” dentro de uma
hierarquia estabelecida, tendo ao topo o Führer, ou simplesmente uma
“Ordem Superior”, à qual este mesmo estaria submetido: no caso, era uma
visão fanática de uma superioridade racial associada a uma missão
civilizatória no estabelecimento de uma sociedade de eleitos.
Auto-eleitos, sublinhemos. Daí, de modo sádico, o nazista típico se
voltava para oprimir – negando toda a forma de humanidade – os que vê
como inferiores nesta hierarquia que é, ao mesmo tempo, social,
cultural, antropológica, espiritual, até religiosa.
Mutatis mutandis,
pois não estamos falando de nazistas, a estrutura espiritual da(s)
direita(s) hoje é análoga. A atividade política é algo por natureza
reservado a uma casta superior, os “entendidos”, aqueles que carregam
consigo não mais uma superioridade racial, pois esse assunto tornou-se
proibitivo, mas uma superioridade civilizatória. No caso europeu, por
exemplo, isso se manifesta em relação aos “extemporâneos” muçulmanos,
norte africanos, ou até mesmo, por parte dos que se identificam com um
“norte saudável e austero”, em relação aos que estes “auto-eleitos”
identificam como os “sulistas ineficientes e perdulários”.
No
caso brasileiro (latino-americano, de um modo geral), os arautos dessa
apologia da desigualdade se situam (inclusive e sobretudo na mídia) como
portadores de uma mensagem civilizatória vinda de uma “ordem superior”,
qual seja, a atual ordem capitalista imposta pela financeirização da
economia e da política, e como tais, negam qualquer possibilidade de
exercício de soberania democrática por parte dos que estão “abaixo”
desse círculo de “auto-eleitos”.
Como
aponta Tarso Genro, uma das vias para se concretizar essa negação da
soberania democrática é a “judicialização” da política; como aponta
Leblon, outra via é a pura e simples negação da história. Abrir o
caminho da participação no círculo do consumo para dezenas de milhões de
brasileiros que dela estavam excluídos não tem o menor significado para
esse tipo de pensamento que se cristaliza em torno da “auto-eleição”.
Ou melhor, tem sim um significado: é insuportável, porque isso pode
abrir-lhes o apetite para quererem mais, como diz Genro, citando Döblin,
do que “pão e manteiga”.
Portanto, para esse tipo de pensamento, é
necessário destruir essa experiência de soberania democrática,
destruí-la institucionalmente, pela negação da política ao seu alcance, e
destruí-la na memória, negando seu valor histórico ou até mesmo a sua
existência, ou afirmando-a como um “anti-valor”: coisa de “demagogia”,
de “compra das consciências através de favores”. Se bem olhada, outra
não foi a argumentação de Mitt Romney para justificar sua derrota em
novembro.
Como
Leblon e Genro, situo-me entre aqueles que olham também – com alguma
apreensão – para o lado esquerdo do tabuleiro, onde me situo. Haverá
entre nós suficiente amplitude de espírito para entender o que está em
jogo? Claro, existe uma dimensão imediata que está presente de modo
imperativo: no Brasil, a eleição de 2014. Mas não é só isto. O que está
em jogo é, depois da derrota histórica do socialismo ao final do século
XX, a possibilidade ou não de reconstrução de uma alternativa que
reponha na agenda política a questão da soberania democrática e popular.
Esta é a questão hoje colocada nos cinco continentes.
Com a palavra, no
caso do Brasil, o governo. Mas não só: com a palavra, também, todos
nós.
Do Blog Sr.Com
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