Como surgiram as diferenças entre sunitas e xiitas e como a divisão entre os muçulmanos tornou-se uma ameaça à paz mundial
Em 12 de março de 2012 o líder religioso xiita Abdullah Dadou morreu
sufocado durante o incêndio de uma mesquita em Bruxelas, na Bélgica. Ele
tinha 46 anos e era pai de 4 filhos. Segundo as autoridades, as chamas
foram provocadas por um extremista sunita que entrou no templo com uma
faca, um machado e um galão de combustível. Ataques desse tipo estão
pipocando ao redor do mundo. Em junho, por exemplo, a explosão de uma
bomba no Paquistão matou 15 peregrinos xiitas que voltavam de uma viagem
ao Irã.
A violência entre grupos xiitas e sunitas também deixou quase 200 mortos
no Iraque. Nove deles eram jogadores e torcedores que morreram com a
detonação de um artefato perto de um campo de futebol em Hilla, no sul
do país. Todos os dias, a violência sectária faz novas vítimas. Por trás
de todas essas cifras recentes, contudo, existe um conflito histórico
que remonta às primeiras gerações de muçulmanos. Tudo começou com uma
desavença política, que sofreu uma transformação gradual nos séculos
seguintes. Os dois lados adquiriram diferenças teológicas, colecionaram
ressentimentos e hoje protagonizam um confronto geopolítico. É o que
você vai ver nesta reportagem.
O sucessor de Maomé
Para entender a disputa entre xiitas e sunitas é preciso voltar ao
século 7, quando Maomé fundou o Islã. Segundo a tradição muçulmana, os
seguidores do Profeta deixaram a idolatria para seguir Alá, o deus
único. Maomé foi perseguido em Meca, sua cidade natal, e migrou para
Medina – onde fundou a primeira comunidade islâmica (a umma). Lá,
tornou-se um líder religioso, político e militar. E as revelações
divinas feitas a ele ficaram registradas no Corão, o livro sagrado dos
muçulmanos.
Maomé nunca deixou claro quem seria seu sucessor. Quando morreu, em 632,
a comunidade muçulmana tinha um belo abacaxi nas mãos. Como seria
escolhido o novo líder? Que funções ele teria? Quanto duraria o mandato?
Assim, surgiram dois grupos antagônicos. “O primeiro, minoritário,
preferia reservar a honra da linhagem profética à família de Maomé. Seu
pretendente era Ali ibn Abi Talib, genro do Profeta, casado com sua
filha Fátima”, diz o historiador Peter Demant, autor de O Mundo
Muçulmano. “Para a segunda corrente, porém, qualquer fiel poderia ser
candidato, desde que fosse aceito por consenso pela comunidade.”
O grupo menor formava o Shiat Ali, ou “partido de Ali”. Seus seguidores
ficaram conhecidos como xiitas. A facção majoritária foi chamada de
sunita (do termo Ahl al Sunna, “o povo da tradição”). Em meio à
emergência de escolher um novo líder, o círculo íntimo dos seguidores do
Profeta elegeu Abu Bakr, velho companheiro de Maomé. Abu Bakr usou o
título de califa (khalifa khalifa), uma palavra árabe que combina as
ideias de sucessor e representante. Os sunitas aplaudiram a escolha, mas
o xiitas protestaram: eles insistiam que Ali era o candidato legítimo.
Pouco antes de morrer, em 634, Abu Bakr apontou Umar ibn Al-Khatab como
seu sucessor. As tropas de Umar expandiram o domínio do Islã pela
península arábica, Egito, Síria, Palestina, Mesopotâmia e parte do
Cáucaso. Em seu leito de morte, Umar nomeou um conselho para decidir
quem seria o terceiro califa. E o escolhido foi Uthman ibn Affan, membro
de uma família grã-fina de Umaya, em Meca. Uthman derrotou a Pérsia e
ampliou ainda mais os domínios do califado, mas os conflitos internos
minaram seu governo. As tribos nômades o identificavam com os
privilégios dos aristocratas que Maomé havia combatido. A crise
desbancou para uma guerra civil e rebeldes muçulmanos assassinaram
Uthman em 656, abrindo espaço para que Ali – o preferido dos xiitas – se
tornasse califa. “Quando Ali finalmente assumiu, as divisões eram
profundas demais para que ele conseguisse impor sua autoridade”, diz
Demant. Ali foi morto 5 anos depois – também pelas mãos de um opositor.
Os xiitas apoiaram a posse de Hassan, filho de Ali, mas o jovem cedeu
ante a oposição de Muawiya ibn Abu Sufyan, governador da Síria. Muawiya
fundou então a primeira dinastia de califas: a dos omíadas, sunitas. Os
sunitas reconheceram o reinado dos 4 primeiros califas – os Reshidun
(“os retamente justos”). Para os xiitas só o reinado de Ali foi
legítimo.
A mutação do conflito
Nos séculos seguintes, a divisão passou a incluir também agravos e
diferenças teológicas. E essas mudanças começaram a tomar forma em 680.
Foi quando Hussein, filho caçula de Ali e neto de Maomé, comandou uma
rebelião xiita para impedir que o califa omíada Yazid assumisse o trono.
Hussein foi degolado e seus aliados acabaram mortos na Batalha de
Karbala, no atual Iraque. “O tratamento dado a Hussein motivou
ressentimentos entre os xiitas. A celebração de seu assassinato durante a
Ashura (o décimo dia do mês de Muharran) se tornou um período emotivo
no qual a comunidade xiita compartilha seu sofrimento”, diz Yvonne
Haddad, professora de História do Islã na Universidade de Georgetown.
A tragédia também ajuda a entender por que os xiitas valorizam tanto a
noção de martírio. Segundo Haddad, a principal distinção entre os grupos
vem de sua visão de mundo. Sunitas acreditam que o Corão é a palavra
eterna de Deus que coexistia com Ele antes da Criação. Já para os
xiitas, o Corão foi criado no tempo e passou a existir quando Deus se
revelou à humanidade. Isso faz toda a diferença na maneira como eles
leem o livro sagrado. “Xiitas consideram que precisam ser guiados para
interpretar o Corão na vida diária, pois o livro depende da época e do
lugar. Assim, precisam um imã (líder religioso) para ajudá-los a
entender a mensagem do Corão”, diz Haddad. “Os sunitas, por sua vez,
acreditam que a palavra de Deus é a mesma e vale para qualquer tempo e
lugar. Portanto, as opiniões dos clérigos sunitas não são tomadas muito
seriamente. E aqueles que clamam por um retorno às interpretações
originais são levados muito a sério. Sunitas tendem a ser mais
doutrinários.”
Os dois grupos também seguem diferentes coleções de Hadith, as
narrativas sobre atos e palavras do Profeta. Isso porque cada lado
confia em narradores diferentes. Sunitas preferem aqueles que eram
próximos de Abu Bakr, enquanto os xiitas confiam nos que pertenciam ao
grupo de Ali. Aisha, por exemplo, é considerada uma fonte importante
pelos sunitas e desprezada pelos xiitas por ter lutado contra Ali.
Aqui é possível fazer uma comparação com o cisma cristão, pois ele também deriva de um embate sobre a autoridade religiosa.
Católicos defendiam que a Igreja tinha o poder de definir o que é o
cristianismo, enquanto os protestantes deixavam essa decisão na mão dos
indivíduos. No caso do cisma muçulmano, a discussão é um pouco
diferente. Sunitas creem que a autoridade está calcada na tradição, isto
é, nas práticas do Profeta e de seu círculo íntimo tal como eles a
definiram.
Já para os xiitas a autoridade está nas “fontes de emulação” – os
líderes supremos da hierarquia religiosa xiita, como os aiatolás.
Sunitas também consideram que o imã é simplesmente a pessoa que lidera a
congregação, como o pastor dos cristãos. Já para os xiitas, o termo Imã
(com letra maiúscula) assumiu um significado totalmente diferente. Ele
se refere aos verdadeiros sucessores espirituais do Profeta Maomé,
começando por Ali. Os xiitas veem os Imãs como uma espécie de santos – o
que para muitos sunitas é uma verdadeira heresia.
Além disso, os xiitas cultivam uma expectativa messiânica sobre a vinda
do Mahdi (Redentor), o que não se observa tanto na outra corrente. Ou
seja: os sunitas são ancorados no passado, ao passo que os xiitas são
mais experimentadores e olham mais para o futuro. O título de aiatolá,
aliás, é bastante recente. E – veja só que ironia – acaba reproduzindo
no Islã xiita a estrutura do clero cristão. “Os líderes do Irã já
dotaram seu país dos equivalentes de um pontificado, de um colégio de
cardeais, um conselho de bispos e, principalmente, de uma inquisição,
coisas que eram todas alheias ao Islã”, diz o historiador britânico
Bernard Lewis, da Universidade de Princeton, EUA. “É possível que acabem
provocando uma Reforma.”
Assassinos: os avós dos terroristas
O martírio é uma noção fundamental entre as seitas xiitas. Mas nenhuma
delas levou a ideia tão a sério quanto a Ordem dos Assassinos, que
espalhou o terror na Pérsia e na Síria nos séculos 11 e 12. Seus
integrantes eliminavam gente graúda: monarcas, ministros, generais e
religiosos – do bando rival, claro. “O inimigo era o sistema político,
militar e religioso sunita. Os assassinatos eram planejados para
aterrorizá-lo, enfraquecê-lo e, finalmente, derrubá-lo”, diz o
historiador Bernard Lewis no livro “Os Assassinos”. Executar a vítima
significava um ato de devoção e envolvia um belo ritual. Segundo os
relatos do explorador Marco Polo, que esteve na Pérsia em 1273, os
chefes da seita ofereciam haxixe aos jovens convocados para matar – daí o
nome Haxaxin, que depois derivou para Assassinos. A droga lhes dava um
gostinho antecipado das delícias do Paraíso.
É que nenhum deles esperava sair vivo da missão. “Depois de matar, os
Assassinos não tentavam fugir nem cometiam suicídio. Eles esperavam
morrer na mão dos inimigos”, diz Lewis. Sempre usavam a adaga em vez de
veneno ou armas de arremesso, o que tornava a operação muito mais
arriscada. Atacavam em mesquitas, mercados ou palácios, agiam sob
absoluto sigilo e muitos se vestiam de mulher para garantir o sucesso da
emboscada. O fundador da seita teria sido o persa Hassan i-Sabah,
conhecido como Velho da Montanha. Ele teria recrutado os primeiros
Assassinos depois de se converter ao ramo ismaelita do xiismo no século
11 – época em que o Oriente Médio foi invadido pelos cruzados.
Disputa virou geopolítica
Atualmente, os sunitas representam cerca de 90% do Islã e os xiitas,
10%. A velha rixa é travada por governos cujos interesses vão além da
tradição religiosa. “O que vemos hoje é um conflito geopolítico”, diz o
escritor Reza Aslan, especialista em história do Islã. Para ele, há dois
polos de influência no mundo islâmico: Arábia Saudita (sunita) e Irã
(xiita). “Vemos diversos grupos fundamentalistas, como o sunita Al
Qaeda, que acusa os xiitas de infiéis. Mas de onde vem a Al Qaeda? Da
Arábia Saudita, que enxerga o Irã como a principal ameaça”, diz.
O conflito é alimentado com o dinheiro do petróleo. O Irã patrocina
grupos terroristas xiitas, como o libanês Hezbollah. A monarquia saudita
fomenta uma versão extremista sunita, o wahhabismo, ensinado em escolas
e mesquitas ao redor do mundo. “O wahhabismo exerce uma influência
tremenda sobre a diáspora muçulmana”, diz Lewis. “Em países
não-islâmicos não existe controle sobre o que é ensinado nessas escolas.
Há um ensino muito mais extremo em colégios muçulmanos da Europa e da
América que na maioria dos países islâmicos.”
O Iraque virou palco perfeito para o embate entre os polos muçulmanos.
Desde a retirada das tropas americanas do país, em dezembro, a violência
sectária explodiu com atentados quase diários. A maioria xiita deseja
vingar as atrocidades do ditador Saddam Hussein, um sunita. O Irã apoia
as milícias xiitas. Os sauditas e a Al Qaeda atuam no campo rival. A
dinâmica se repete pelo Oriente Médio. No Barein, por exemplo, a maioria
xiita se rebela contra rei Hamad, que é sunita. Na Síria, principal
aliada do Irã, a Primavera Árabe motivou uma rebelião contra o regime
alauíta, da minoria xiita.
Segundo as Nações Unidas, os confrontos já produziram mais de 9 mil
mortos no país. Isso não significa que o conflito seja mais violento
hoje. Nos primeiros séculos do Islã, houve guerras massivas. “Nos
séculos 7 e 8, os omíadas construíram um império sunita. E quem não
fosse sunita era massacrado”, diz Aslan. “No século 8, os abássidas
assumiram o poder. Eles descendiam de Maomé através de Fátima (filha do
Profeta e mulher de Ali). Eram xiitas. E seu império massacrou sunitas.”
LivroO Oriente Médio, Bernard Lewis, Jorge Zahar, 1996
Texto: Eduardo Szklarz / Design: Villas
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