O embargo sobre importações de discursos de ódio foi suspenso por
ministros do Supremo Tribunal Federal no processamento da Ação Penal
470. Se não forem suspeitamente destruídos, os vídeos das sessões têm
registrado ao vivo o que não foi transcrito nos assépticos e
desidratados votos por escrito. Nem todos os membros do STF aderiram à
liberalidade em favor do mal, mas a instituição ficará marcada pelo
período de amnésia do bom senso judicativo e em que prevaleceram a face
congestionada e o salivar da exaltação enraivecida. Rituais de
degradação, expressamente vedada em tribunais de estado de direito,
sucederam-se diariamente, especialmente em relação aos réus ligados ao
Partido dos Trabalhadores – Delúbio Soares, José Genuíno e José Dirceu,
este acusado de chefiar uma quadrilha depois reconhecida pelo mesmo
Tribunal como inexistente.
O empresário Marcus Valério, entre os acusados não políticos, foi
retoricamente incendiado como Judas cerca uma centena de vezes. O
julgamento da Ação Penal 470 foi o evento que plantou mais dúvidas
jurídicas na história recente: da comprovação dos crimes imputados aos
procedimentos processuais e destes às penas impostas. Está arquivado em
atas e filmes.
Leis e julgamentos são episódios humanos que, ao contrário das causas
físicas, não cessam de produzir efeitos, alguns deles irreversíveis,
mesmo quando interrompidos em sua operação. Creio ser razoável atribuir a
violência proporcionada pelas manifestações de junho de 2013, e a
instauração da cultura do terror lecionada em universidades, a parcela
não desprezível do paradigma estabelecido pela Ação Penal 470. A
essência do exemplo é evidente: quando as instituições existentes não
contemplam o que a alguns aparece como apropriada dose de justiça,
passam a ser justificáveis todas as arbitrariedades, amparadas em uma
ideologia grupal, não pública.
Por certo referências a movimentos de revolta no exterior serviram para
colorir de modernidade os quebra-quebras internos. Primeiro foi a
evocação da primavera árabe, obviamente equivocada, pois lá se tratava
de uma rebelião contra sistemas ditatoriais, alias substituídos por
outros do mesmo naipe. Depois, alguns analistas importaram os
“precariados” da Espanha, Grécia e Portugal. Todos esses países com
enormes índices de desemprego e sem perspectiva de futuro, sobretudo com
a difusão de governos de direita ou, no melhor dos mundos, liberais
conservadores. Levou algum tempo de quebra-quebras e pancadaria para que
se reconhecesse o ululante: o sistema brasileiro não é ditatorial nem a
taxa de desemprego preocupa. Ao contrário, faz parte do receituário
liberal brasileiro justamente provocar maior taxa de desemprego, o que
certamente viria acompanhado de endurecimento do fator repressivo
inerente a todo Estado.
A mídia desesperou de direcionar as ações trânsfugas e niilistas para
objetivos políticos da oposição. Nem o tratamento dos ativistas como
desbotar da juventude obteve sucesso. Não são desempregados, não estão
lutando contra uma ditadura inexistente, mas precisamente contra as
instituições democráticas em funcionamento. E são adultos o suficiente
para desdenharem sonhos românticos ao sucumbirem à atração da força
bruta pela força bruta. Os depredadores eventualmente aprisionados não
são rapazes e moças nos seus primeiros anos de universidade ou operários
sacrificados pela acumulação capitalista. São membros bem grandinhos da
classe média, empregados e com poder aquisitivo suficiente para passar
horas usando equipamento caro para fins de propaganda. Viajando para a
promoção de distúrbios fora de casa quando assim planejam.
Ainda está por surgir uma boa hipótese sobre o aparecimento dessas
explosões sociais de rápida expansão, recebimento de apoio e posterior
transformação em seita fundamentalista. Mas não acredito que a violência
impune da Ação Penal 470 seja inocente na inauguração do clima em que
parece ser possível a co-existência de um estado selvagem à sombra
protetora das instituições democráticas. Está aí a propaganda eleitoral
dos conservadores, com sua retórica vulgarmente agressiva e propósitos
confusos quanto às políticas sociais em curso e o projeto de construção
de uma sociedade economicamente forte. Herdeiros do Supremo Tribunal
Federal da exceção e dos depredadores do patrimônio público.
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