Focada
em operações internas contra a corrupção, a Polícia Federal deixa livre
para a facção criminosa as fronteiras com o Paraguai e a Bolívia
Enquanto a PF persegue os holofotes, o PCC domina o tráfico na fronteira |
Nascido de
São Paulo, o PCC tem ganhado musculatura nos últimos 20 anos, baseado
em uma visão empresarial sólida e premiado pela sucessão de erros das
forças de segurança pública, que vão das péssimas condições do sistema
carcerário à falta de interlocução entre as polícias. Só agora, e não
por acaso, a facção conseguiu entrar de fato no radar internacional.
Além do
Brasil, há provas da presença do PCC no Paraguai e na Bolívia e
indícios de que o grupo alcançou a Argentina e o Uruguai. Segundo a
própria Polícia Federal, a organização chegou à África Ocidental. Um
crescimento vertiginoso, respaldado pela falta de articulação
brasileira para enfrentar o problema.
Em tese, quem deveria
combater facções com essa capilaridade deveria ser a PF, responsável
por investigar crimes transnacionais. Há dúvidas, porém, se as leis
permitiriam aos federais atuar em investigações de assaltos a
carros-fortes ou assassinatos em pontos localizados. Na dúvida, ninguém
faz nada. Ou quase nada.
O caso da PF é emblemático.
De acordo com o presidente da Federação Nacional dos Policiais
Federais, Luís Antônio Boudens, está tudo errado. A corporação tem
cerca de 15 mil profissionais, mas menos de mil atuam ao longo dos 17
mil quilômetros de fronteiras do Brasil com outros dez países da
América Latina. Para agravar a situação, normalmente são designados
agentes em início de carreira, menos experientes. Mais, explica
Boudens: “Quando há uma ação prioritária, os agentes são realocados e
deixam a fronteira aberta. Na época dos grandes eventos esportivos, a
PF parou”.
Maior
produtor de maconha da América Latina, o Paraguai é uma área cobiçada
pelas facções. “O Brasil volta-se para questões internas, o que criou
uma oportunidade enorme para o PCC e para o CV crescerem e atuarem nos
países vizinhos. Assistimos neste momento a uma guerra de traficantes
brasileiros em território paraguaio”, afirma o jornalista paraguaio
Cándido Figueredo, do jornal ABC Color, especialista no tema.
Com o assassinato de Jorge Rafaat Toumani, o PCC e o CV dominaram a venda de drogas na fronteira paraguaia Foto: Najla Passos |
O tráfico movimenta,
segundo Figueredo, ao menos 300 milhões de dólares ao ano apenas no
aglomerado urbano formado por Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul, e
Pedro Juan Caballero, no Paraguai, principal rota do tráfico para a
América do Sul e a Europa, onde é possível atravessar de um país a outro
sem nenhum trâmite burocrático ou aduaneiro. “Se o PCC e o CV não
entrarem em acordo sobre como dividir esse dinheiro, será um banho de
sangue”, prevê.
A
circulação de drogas na fronteira é realmente livre. Reconhecido como o
órgão mais eficiente no combate ao narcotráfico, o Departamento de
Operações de Fronteira, ligado à Secretaria de Justiça e Segurança
Pública de Mato Grosso do Sul, apreendeu 7 mil toneladas de maconha
entre janeiro e maio. O volume é 46% maior do que no ano anterior.No
comando do órgão há um ano, o coronel Kleber Haddad Lane atribui o
incremento ao trabalho da unidade. “Decidimos centrar nossas operações
na região de Ponta Porã, que, por causa da localização geográfica,
escoa também a cocaína produzida na Bolívia, no Peru e na Colômbia.”
Lane admite, entretanto,
que a estratégia adotada está longe de deter o problema. “Somos
reconhecidos pelo alto número de apreensões por fazermos um trabalho
contínuo. Sabemos que, se partirmos para o enfrentamento direto com o
narcotráfico, vamos perder.” No departamento, compara, falta até rádio
para comunicação, enquanto os traficantes dispõem de drones, fuzis e
aviões.
Crimes com
alto grau de sofisticação e violência, com DNA atribuído ao PCC, são
cada vez mais frequentes nas fronteiras com o Paraguai e a Bolívia. Os
roubos de carros-fortes e, mais recentemente, dos depósitos das
próprias empresas que transportam dinheiro, crescem vertiginosamente. O
mais emblemático episódio, considerado o marco zero da guerra em
curso, foi o assassinato do narcotraficante Jorge Rafaat Toumani, 56
anos, há um ano. Considerado “o rei do tráfico”, Rafaat dominou a
fronteira durante duas décadas. Com prisão decretada no Brasil,
circulava por Pedro Juan Caballero com status de chefe de Estado. “Ele
fechava a rua para entrar ou sair de casa, sempre com dois carros de
seguranças à frente e dois atrás”, conta Figueredo.
O
traficante foi morto durante uma ação conjunta do PCC com o CV, quando
circulava em uma caminhonete blindada, que não suportou o impacto da
metralhadora de calibre 50, utilizada pelo Exército dos Estados Unidos
para derrubar aviões. Mais de cem homens fortemente armados participaram
da operação, cujos custos foram estimados em cerca de 1 milhão
de dólares. O “narcoexército” desapareceu no ar. Até hoje ninguém foi
preso, nem no Brasil nem no Paraguai. Depois da operação conjunta e da
eliminação do inimigo comum, o PCC e o CV entraram em guerra pelo
controle da área.
Sem
efetivo necessário para garantir a segurança dos seus próprios agentes,
a delegacia da PF em Ponta Porã terceirizou o serviço. Glauber Araújo,
delegado responsável pela área, não informa o tamanho do atual
efetivo, por “questões de segurança”. E não nega a contratação de
segurança privada. “Sabemos que a região de fronteira é mais delicada e
tomamos mais precauções”, limita-se a dizer. Boudens critica a
terceirização. “Em Pernambuco há decisão judicial para a PF retirar os
terceirizados dos aeroportos, pois segurança pública é função do
Estado.” A Polícia Federal não respondeu às perguntas encaminhadas por CartaCapital.
Depósito de drogas apreendidas pelo DOF. Este ano foram mais de 7 mil toneladas Foto: Najla Passos |
Na Polícia Civil,
a questionável solução serve de apoio ao baixo efetivo. Com apenas
três agentes para cuidar dos registros e investigações de ocorrências, o
titular da 2ª Delegacia de Polícia de Ponta Porã, Patrick Linares da
Costa, decidiu tomar uma atitude discutível quando soube que o PCC
pretendia invadir o local para resgatar um dos seus integrantes
preso: amarrou o criminoso em um bujão de gás e colocou na porta. “Até
hoje não apareceram”, gaba-se.
A falta de
recursos causa outros constrangimentos. O principal aeroporto da
região está localizado há cerca de 100 quilômetros do foco da guerra,
no município de Dourados. Mantida pela prefeitura, a pista recebe dois
voos comerciais nos dias de semana e um aos sábados e domingos.
Conforme um servidor municipal que pediu o anonimato, o aeroporto não
tem raio X para inspecionar bagagens. E o controle com cães
farejadores, função da PF, foi interrompido há meses.
De todas
as soluções inusuais utilizadas pelas forças de segurança da fronteira
para sobreviver à guerra do tráfico, a mais polêmica foi adotada pela
Polícia Militar paranaense, em parceria com a Polícia Nacional do
Paraguai. Após a morte de Rafaat, quando o aumento dos roubos passou a
assustar a população e os enfrentamentos com os narcotraficantes
começaram a atemorizar os policiais, firmou-se o seguinte pacto
bilateral.
“Pelo nosso acordo,
qualquer uma das polícias pode atuar no país vizinho, em caráter
excepcional, desde que em situa-ção de diligência. Isso aumenta a
segurança da população, pois os criminosos sabem que não podem mais
atravessar uma rua e sair impunes como ocorria antes”, acredita o
coronel Waldomiro Centurião, comandante do Batalhão da PM em Ponta
Porã. “Nossa parceria prevê também que, em caso de ataque do
narcotráfico, possamos acessar os dois países para uma ação mútua”,
acrescenta o comissário Manuel Irrazabal, comandante do Grupo de
Operações Táticas da PNP. “A população quer resultados. Não importa quem
prenda o criminoso. Com esse acordo, reduzimos a criminalidade em
80%.”
'Nossa parceria prevê também que, em caso de ataque do narcotráfico, possamos acessar os dois países para uma ação mútua', afirma o comissário Manuel Irrazabal, comandante do Grupo de Operações Táticas da PNP Foto: Najla Passos |
Por causa da presença
das facções brasileiras, descreve o comissário, policiais passaram a
comprar armas e munições com o próprio salário para se defender. O
major Ulisse Canete encaixa-se nesse perfil. Apesar de carregar um
fuzil de propriedade do governo paraguaio, achou por bem pagar 2 mil
dólares por uma pistola de fabricação tcheca. “O Paraguai possui uma
política muito permissiva em relação à venda e ao porte de armas.
Qualquer um pode comprar com facilidade. Os criminosos, por
consequência, estão muito mais bem armados do que as polícias”, avalia
Irrazabal.
O pacto local não tem
respaldo das relações diplomáticas dos dois países, também inoperantes
em relação ao tema. Centurião rebate, porém, as críticas de que a
atuação de policiais estrangeiros em outro país possa ferir a soberania
nacional. “O acordo respalda-se no princípio da garantia da dignidade
humana, que se sobrepõe ao da territorialidade. O intuito não é atentar
contra a soberania dos países, mas proteger as populações.”
A parceria na
fronteira anima quem vive e atua na região, principalmente os agentes
ameaçados pelo poder de fogo do tráfico. Em maio, Irrazabal foi
condecorado com a Medalha Tiradentes pelo comando da PM em Campo Grande
(MS). Tornou-se herói em uma terra sem lei.
Najla Passos
No CartaCapital
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