A manchete da Folha de hoje é de doer. É mais uma daquelas matérias em que se manda o repórter ir a campo não para ver uma realidade, mas ratificar uma afirmação que já saiu concebida da mesa da chefia. O tema, hoje, é aquela velha história de que, recebendo o Bolsa-Família, o “povinho vagabundo” se acomoda e não quer trabalhar. É evidente que, em um caso ou outro isso pode acontecer, como acontece com os herdeiros de gente rica que não querem nada com o batente.
Num trabalho “científico” e aprofundado, o jornal chega a esta conclusão ouvindo dois trabalhadores e um ex-cafeicultor. A antiga fazenda de café, que está acabando por falta de gente que queira trabalhar, fica-se sabendo, está se acabando por “falta de quem queira trabalhar” com carteira assinada. É preciso ir té o finzinho da segunda parte da matéria para saber que “a dificuldade na contratação de mão-de-obra não é o único motivo para o abandono da produção de café” e que o dono da fazenda diz que, na comparação com outros produtos “o café vem tendo valorização baixa nos últimos anos”.
Mais curioso ainda é que o jornal atribui parte do problema à fiscalização do Ministério do Trabalho, que se intensificou e que pune o trabalho em condições irregulares. Fica, sem ser dita, a impressão de que “uma afrouxadinha” do Ministério ajudaria bastante. Curioso, entretanto, é que a mesma matéria, lá no finzinho, também, diz que a fiscalização rendeu à Bahia quase 30% do total de carteiras assinadas em todo o país e o maior número absoluto de admissões formais em todo o Brasil.
Muito, não é, para um povinho que não quer trabalhar de carteira.
O Ministério do Desenvolvimento, questionado, disse que precisava se informar do problema específico da localidade de Brejões e foi ignorado: segundo o jornal, o MDS “não se posiciona”. Cita-se, en passant, um estudo da ONU, que “derrubaria” a tese de que o Bolsa-Família gera recusa ao trabalho formal, mas que admitiria que o fenômeno é “estatisticamente relevante”.
O estudo está disponível aqui, em inglês. E parte de suas conclusões está em português, no site do Programa de Desenvolvimento da ONU, em português:
“O levantamento derruba a tese de que o Bolsa Família estimule as pessoas a pararem de trabalhar. O impacto na participação no mercado “não é significativo nem para homens nem para mulheres”. A probabilidade de quem recebe os recursos governamentais estar ocupado é maior — 1,7% a mais para homens, 2,5% para mulheres —do que entre pessoas da mesma faixa de renda que não participam do programa. Uma das explicações para isso é que o benefício está atrelado à necessidade de as crianças frequentarem a escola. Sem terem de ficar em casa para cuidar dos filhos, as mulheres disporiam de mais tempo para se dedicar a uma atividade remunerada.
Outro trabalho do PNUD, da autoria de três pesquisadores brasileiros do Centro Internacional da Pobreza, outra entidade multinacional diz que “no grupo dos 10% mais pobres do Brasil, a porcentagem de pessoas que trabalhavam ou procuravam trabalho era de 73% entre os que recebiam o Bolsa Família e de 67% entre os que não recebiam. Na parcela dos 10% a 20% mais pobres, 74% dos beneficiários pelo programa de renda eram economicamente ativos, contra 68% entre os não-beneficiados. No grupo seguinte (20% a 30% mais pobres), a taxa era de 76% para atendidos e de 71% para não-atendidos.”
Aliás, os pesquisadores vão direto ao ponto: “A noção de que programas de transferência são um desincentivo ao trabalho é mais baseada em preconceito do que em evidências empíricas”.
Traduzindo, no mito do brasileiro preguiçoso.
Monteiro Lobato, que começou sua carreira literário com o Jeca Tatu, indolente, preguiçoso, desdenhoso para com o trabalho, mostrou que, de olhos e coração aberto os homens de bem são capazes de entender que a maioria dos pobres não é pobre porque quer. E terminou sua vida escrevendo o contraponto do Jeca, o Zé Brasil – um folhetim ilustrado por Portinari, como vai este post, e que diz lá, em carto trecho:
A gente da cidade – como são cegas as gentes das cidades!… Esses doutores, esses escrevedores nos jornais, esses deputados, paravam ali e era só crítica: vadio, indolente, sem ambição, imprestável … não havia o que não dissessem do Zé Brasil. Mas ninguém punha atenção nas doenças que derreavam aquele pobre homem – opilação, sezões, quanta verminose há, malária. E cadê doutor? Cadê remédio? Cadê jeito? O jeito era sempre o mesmo: sofrer sem um gemido e ir trabalhando doente mesmo, até não agüentar mais e cair como cavalo que afrouxa. E morrer na velha esteira – e feliz se houver por ali alguma rede em que o corpo vá para o cemitério, senão vai amarrado com cipó.
Mas você morre, Zé, e sua alma vai para o céu, disse um dia o padre – e Zé duvidou.
Está aí uma coisa que só vendo! Minha idéia é que nem deixam minha alma entrar no céu. Tocam ela de lá, como aqui na vida o coronel Tatuíra já me tocou das terras dele.
Quem sabe Lobato tem piedade das alminhas miúdas metidas em empregos fartos, de escrevedores de jornal e de deputados”, que depois de um século quase não conseguiram ver o que ele viu em poucos anos.
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