domingo, 4 de setembro de 2011

Os últimos Tapuyas

Mal consigo andar quando chego de volta ao território dos fulni-ôs, os últimos tapuyas, próximo à capital federal. Já estou praticamente sendo carregado. Meus joelhos estourados me ensinam que talvez seja melhor andar mais devagar e, com certeza, carregando menos peso. A cada dia tenho mais certeza disso e aprendo mais profundamente que devemos sempre carregar menos, ter menos, pois isso é ter mais. Mas me desfazer da maior parte da bagagem agora já não resolve o fato de que a essa altura minhas juntas parecem bolas de basquete.

Junto à fogueira, Tainã “Wawa” e Choá cantam uma música ancestral em sua língua, o yaathê (do tronco macro-gê), da qual eu não compreendo sequer uma palavra, mas sinto a emoção e entendo. De todas as etnias indígenas do Nordeste, apenas os fulni-ôs preservaram seu idioma mesmo após 500 anos de invasão europeia.

Awá Mirim fuma sua chanduca em silêncio. Quando eles fazem isso, estão conversando em pensamento com o Grande Tupã. Talvez esteja pensando na luta, na violência com que os grileiros tentaram invadir a terra na semana anterior. Talvez Awá esteja pensando na esposa e na filha, que junto com as outras mulheres e crianças foram levadas dali para um lugar seguro por prudência, afinal, nos últimos dias a tensão e as ameaças de morte aumentaram. O pajé Santxiê fala para eu me acalmar, deitar na rede e relaxar, tirar um cochilinho e depois entrar na mata. A única outra pessoa branca presente naquele momento além de mim, cujo nome eu não me lembro, me aconselha: “Você devia ir ao médico”. Respondo: “Já vim”.

O velho pajé volta com uns ramos de aroeira na mão e uma pelota de resina de uma árvore que só ele deve saber qual é. Prepara o chá, molha com ele a resina que vira uma gosma cor de âmbar que aplica sobre meus joelhos e me manda beber um pouco da infusão. “Fique perto da fogueira, que o calor ajuda. Amanhã você vai estar bonzinho, bonzinho”, garante Santxie.

E era bom que eu estivesse bom mesmo, pois a essa altura eu já estava sendo contado entre os guerreiros e já tínhamos a informação de que no dia seguinte, segunda-feira, os tratores das empreiteiras Emplavi e Brasal voltariam com escolta da Polícia Militar para terminar o serviço de destruição da mata-santuário, onde empresários como Paulo Otávio e Daniel Dantas pretendem construir o bairro mais caro da história de Brasília.

Das milhares de espécies medicinais que há naquela mata, mais as que o pajé cria no seu herbário, veio a ser a aroeira que me curaria. Me lembro que a última vez que estive em Brasília acabei sendo preso pela Polícia do Senado justamente por plantar uma muda dessa árvore.

Na natureza funciona assim: você rega, dá água a uma planta quando ela é pequena, e as grandes te dão galhos para o fogo que te aquecerá à noite. Você cuida delas que elas cuidam de você.

No mundo dos brancos não é assim: é só ingratidão. Penso na saga dos fulni-ôs, que habitavam o cerrado e a catinga. Foram um dos primeiros povos a ser massacrados e expulsos de sua terra. Ficaram anos e anos sem poder retornar à montanha sagrada à qual devem peregrinar todos os anos para a celebração do Ouricuri, em Pernambuco, onde vive a maioria dos fulni-ôs.

Durante a Guerra do Paraguai, aquela vergonhosa guerra que o Brasil lutou pela Inglaterra, os fulni-ôs receberam uma promessa: se enviassem guerreiros para o front receberiam de volta a montanha sagrada. Muitos morreram sem nem mesmo saber os reais motivos da guerra. O Estado não cumpriu sua promessa e só devolveu a montanha do Ouricuri no início do século XX, mas não devolveu terra suficiente para assentar todas as famílias em seu modo de vida tradicional.

Nos anos 50, mais uma vez, os tapuyas foram enganados. Por conhecerem bem o cerrado, seus perigos e poderes, muitos foram levados ao Planalto Central para trabalhar na construção da nova capital. O avô, o pai e tios de Santxie foram índios candangos, ainda mais explorados e desrespeitados que os demais operários que trabalharam erguendo a cidade faraônica. Como sua religião exige a imersão na mata e o isolamento (seus rituais não podem ser vistos por gente de outros povos), os fulni-ôs se retiravam dos canteiros de obras para uma área junto ao córrego do Bananal, importante para diversas tribos que antes da catastrófica passagem do bandeirante Anhanguera (um dos maiores genocidas de nossa história) pelo Planalto Central habitavam ou transitavam por aquela região.

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