O rumoroso caso Demóstenes Torres (DEM-GO) não é apenas mais um caso de
corrupção denunciado pelo Ministério Público. É uma chance única de
reavaliar o que foi a política brasileira na última década, e de como
ela – venal, hipócrita e manipuladora – foi viabilizada por um estilo de
cobertura política irresponsável, manipuladora e, em alguns casos,
venal. E hipócrita também.
Teoricamente, todos os jornais e jornalistas sabiam quem foram os
arautos da moralidade por eles eleitos nos últimos anos: representantes
da política tradicional, que fizeram suas carreiras políticas à base de
dominação da política local, que ocuparam cargos de governos passados
sem nenhuma honra, que construíram seus impérios políticos e suas
riquezas pessoais com favores de Estado, que estabeleceram relações
profícuas e férteis com setores do empresariado com interesses diretos
em assuntos de governo.
Foram políticos com esse perfil os escolhidos pelos meios de comunicação
para vigiar a lisura de governos. Botaram raposas no galinheiro.
Nesse período, algumas denúncias eram verdadeiras, outras, não. Mas os
mecanismos de produção de sensos comuns foram acionados
independentemente da realidade dos fatos. Demóstenes Torres, o amigo
íntimo do bicheiro, tornou-se autoridade máxima em assuntos éticos.
Produziu os escândalos que quis, divulgou-os com estardalhaço. Sem ir
muito longe, basta lembrar a “denúncia” de grampo supostamente feita
pelo Poder Executivo no gabinete do ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF) Gilmar Mendes, então presidente da mais alta Corte do país. Era
inverossímil: jamais alguém ouviu a escuta supostamente feita de uma
conversa telefônica entre Demóstenes, o amigo do bicheiro, e Mendes, o
amigo de Demóstenes.
Os meios de comunicação receberam a suposta transcrição de um grampo,
onde Demóstenes elogia o amigo Mendes, e Mendes elogia o amigo
Demóstenes, e ambos se auto-elegem os guardiões da moralidade contra um
governo ditatorial e corrupto. Contando a história depois de tanto
tempo, e depois de tantos escândalos Demóstenes correndo por baixo da
ponte, parece piada. Mas os meios de comunicação engoliram a estória sem
precisar de água. O show midiático produzido em torno do episódio
transformou uma ridícula encenação em verdade.
A estratégia do show midiático é conhecida desde os primórdios da
imprensa. Joga-se uma notícia de forma sensacionalista (já dizia isso
Antonio Gramsci, no início do século passado, atribuindo essa prática a
uma “ imprensa marrom”), que é alimentada durante o período seguinte com
novos pequenos fatos que não dizem nada, mas tornam-se um show à parte;
são escolhidos personagens e lhes é conferida a credibilidade de
oráculos, e cada frase de um deles é apresentada como prova da
venalidade alheia. No final de uma explosão de pânico como essa, o
consumo de uma tapioca torna-se crime contra o Estado, e é colocado no
mesmo nível do que uma licitação fraudulenta. A mentira torna-se verdade
pela repetição. E a verdade é o segredo que Demóstenes – aquele que
decide, com seus amigos, quem vai ser o alvo da vez – não revela.
Convenha-se que, nos últimos anos, no mínimo ficou confusa a medida de
gravidade dos fatos; no outro limite, tornou-se duvidosa a veracidade
das denúncias. A participação da mídia na construção e destruição de
reputações foi imensa. Demóstenes não seria Demóstenes se não tivesse
tanto espaço para divulgação de suas armações. Os jornais, tevês e
revistas não teriam construído um Demóstenes se não tivessem caído em
todas as armadilhas construídas por ele para destruir inimigos,
favorecer amigos ou chantagear governos. Os interesses econômicos e
ideológicos da mídia construíram relações de cumplicidade onde a última
coisa que contou foi a verdade.
Ao final dos fatos, constata-se, ao longo de um mandato de oito anos,
mais um ano do segundo mandato, uma sólida relação entre Demóstenes e a
mídia que, com ou sem consciência dos profissionais de imprensa,
conseguiu curvar um país inteiro aos interesses de uma quadrilha sediada
em Goiás.
Interesses da máfia dos jogos transitaram por esse esquema de poder. E
os interesses abarcavam os mais variados negócios que se possa fazer com
governos, parlamentos e Justiça: aprovação de leis, regras de
licitação, empregos públicos, acompanhamento de ações no Judiciário. Por
conta de um interesse político da grande mídia, o Brasil tornou-se
refém de Demóstenes, do bicheiro e dos amigos de ambos no poder.
Não foi a mídia que desmascarou Demóstenes: a investigação sobre ele
acontece há um bom tempo no âmbito da Polícia Federal e do Ministério
Público Federal. Nesse meio tempo, os meios de comunicação foram reféns
de um desconhecido personagem de Goiás, que se tornou em pouco tempo o
porta-voz da moralidade. A criatura depõe contra seus criadores.
(*) Colunista política, editora da Carta Maior em São Paulo.
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